sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

A vida 2

A vida é um filme que começou e não tem outra sessão.



.

A vida 1

A vida é o meio entre um começo que não sabemos e um fim que não podemos ir além. E se isso parece uma das mais desesperadoras, frias e tristes visões da vida, pare e pense que estar exatamente no meio é desafiar o vazio antes de tudo e o vazio depois de tudo, pois somos algo quando aqui(na vida) estamos. "ESTAMOS DEFINITIVAMENTE NA VIDA"(Roberto Piva).

Escurecimento

O escuro torna tudo unidade. não há diferenças, horizontes divisiveis de realidade alguma, não há singularidades , aparece-nos o completo escuro como um 'unidor', aquilo que junta todas as realidades e nos apresenta um único 'ver'. Diferente da iluminação o escurecer nos torna unitários em todos os aspectos, iluminar é diferenciar, identificar diferenças óbvias; e o carater unitário do escurecer também traz obviedade, pois sabemos que há apenas a possibilidade de ser 'um' nessa realidade.

Escrita Experimental 2

temjo qer defeuai cm te,uo oljai e cim i rec ladi incnnrtiso

(Essa frase acima sem sentido e com palavras incorretas é resultado da experiência e tentativa de digitar de olhos fechados e com o teclado invertido, essa é uma série chamada de ‘escrita experimental’, a frase seria : “Tenho que digitar um texto sem olhar e com o teclado invertido”).


A intenção da série 'escrita experimental' é essa, provocar as coisas mais incomuns que se pode tentar escrever e a maneira que se usa no momento.


.

Maneiras

... não sei o que percorre meu último neurônio
se é um impulso (D)e r(a)zão ou de irracionalidade
não tenho como te mostrar isso em pala(v)ras
não há mane(i)ra de te fazer sentir o (Que) se passa em m(i)m
tenho um vocabulá(r)io de palavras c(o)mplicadas e 'filosóficas'
mas nada disso consegue me tradu(z)ir
e(M) qu(a)l idioma isso seria possível?
em qual alfabeto as letras (c)ontribuiriam mais com min(ha) forma (d)e escrever?
p(o)is escrevo escrevo e não sei porque não consigo usar vírgulas.
Por que?(é junto ou separado esse 'porque' (e esse?) ).
Vou colocar o parênteses dentro dos parênteses: ( ( ) )
Se você enxerga meu nome está dentro deles.
Pronto talvez os símbolos sejam mais corretos pra esclarecer as coisas
... (reticências é uma pontuação muito abstrata e adoro usá-la) ...
Agora vamos deixar de brincadeira e começar a escrever da forma correta e séria ...só que agora o texto vai acabar pois de correta e séria minha escrita não têm nada...


.

Minha Geração

Minha Geração

minha geração não gera nada
gera sim
filhos do descuido
da falta de educação sexual

minha geração não diz nada
diz sim
'vai se fuder capitalismo'
e nem sabe que foder é um mercado supervalorizado

minha geração não escreve nada
escreve sim
"tbm qero vc S2"
e conversa pouco ou quase nada

minha geração não revoluciona nada
revoluciona sim
muda de estilo e revoluciona o mundo
da moda

minha geração não faz história
faz história sim
estuda e decora ela
depois esquecem que os livros existem

minha geração não luta por causas
luta sim
tem a galera do jiu-jitsu, do muai-tai, do judô
e sai todo mundo lutando

minha geração não merece ser lembrada
merece sim
A geraçao que nasceu livre
mas nem percebeu esse detalhe.


.

Palavras Cronometradas

Tenho um minuto pra escrever essa palavras, o que pode ser dito em tão pouco tempo, algo que valha a pena dizer, perdão se eerrei alguma palvar não ha tempo de corrigir assim como na vida voce esta na contagem dela e nao ha tempo pra revisar ou retornar e corrigi se vivieu com todas as letras corretas das palvar viver!

.

Pegadas

Pegadas


... corre! Mas não deixa pegadas. Tem os pés leves, quase sem peso. Encontra obstáculos.

- E daí, quem vai me achar? Não deixo pegadas. Não piso em falso. Corro. Com fé na velocidade que sei que tenho.

Depois de muito correr: cansaço.

- É, correr cansa.

Acorda, sonha, corre. Não gruda os olhos. Mantêm as pálpebras abertas. A linha de chegada está longe. Reza. Roga para que os pés agüentem a estrada aí a frente.

- Vão agüentar. Adoro tato, pé no chão. Pedra no caminho.

Não tropeça. Ou tropeça pra saber como é, mas se o faz não esquece de levantar, não fica no chão e não deixa pegadas.

- Sei. Só estou te testando; vendo se você consegue escrever sobre mim sem me influenciar.

Então você sabe que escrevo um conto sobre sua corrida?

- Desde o começo.

Então cuidado, mais na frente do conto vou colocar um vale pra lhe barrar o caminho, um riacho não tão profundo pra você atravessar.

- Pare!

O que foi?

- Não me conte meu destino, deixa que eu mesmo o traço.

Mas quem escreve sou eu, meu traço é seu passo; você é o personagem.

- Sou? Então porque não parei de correr ainda?

... muito bem, por mais que este conto acabe meu caro personagem corredor, não posso colocar um ponto final em suas atitudes de moldar seu próprio destino, por isso não vejo suas pegadas desde o começo, deve ter aprendido a fugir do escritor, da história. Vá! Corra e faça suas histórias, mas lembre-se de voltar para que eu as escreva.

- Não se preocupe escritor que me criou, sempre retornarei à ponta de sua caneta. Correndo sobre as linhas, pulando páginas, voando sobre capítulos, nadando nos versos, bebendo as letras, conversando em sua prosa, sentindo sua criatividade me recriar, mas não me siga. Não vou deixar pegadas.


.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Micróbio e Deus

"Não faz questão de ser visto e está em todo lugar; ou seja, o micróbio é quase Deus."

Cuspida

cuspa essas palavras com o coração

solte essa palavra presa entre os dentescuspa o mais forte que conseguirque ela suje o rosto de quem não entendere que lave a alma daqueles que já estão preparados
vamos! deixe de temer a própria salivaela é bebida para o seu estilo sedentoo estilo que esqueceu de levar o cantilpara uma caminhada no deserto
vamos! coloque os músculos desse maxilar pra funcionarjunte muita saliva e cuspanão engula palavras que podem te libertarnão engula sua saliva poética
escarre com força se for necessárioquanto mais intelectual vier seu muco mas seu estilo terá consistência de uma verdadeira cuspidaa gosma inteligente chamada cérebro
isso! solte o predicado que lhe engasgao substantivo que lhe sufocaa preposiçao que lhe careia os dentese o adjetivo que lhe apodreçe o hálito
pronto! cuspa cuspa cuspaa própria palavra já é dita como se o fizessecuspa e regue a frase mais linda que já amou'escarra nessa boca que te beija' (cuspa essas palavras com o coração).

No meio disso tudo.

A vida é o meio entre um começo que não sabemos e um fim que não podemos ir além. E se isso parece uma das mais desesperadoras, frias e tristes visões da vida, pare e pense que estar exatamente no meio é desafiar o vazio antes de tudo e o vazio depois de tudo, pois somos algo quando aqui(na vida) estamos. "ESTAMOS DEFINITIVAMENTE NA VIDA".

Mulher

Eu não tenho seios cara, nem cabelos compridos, nem útero, nem uma vagina entre as pernas, mas sei que as mulheres almejam tantas coisas quanto nós e por isso não vou me limitar a julgá-las superficialmente. Aí você poderia me perguntar se se sou feminista, ou gay, ou mais um mentiroso tentando ganhar a atenção da platéia feminina, pois bem, pode me julgar como quiser, afinal todos temos juízos não é mesmo? Que o seu pré-juizo não seja um prejuizo para os poucos homens que tentam demonstrar que respeitam sim as mulheres, por mais que nossa história mostre o contrário. Eis aqui as pouquíssimas palavras masculinas acerca da difícil realidade feminina. E só são poucas as linhas porque acredito que um homem não saberia falar exatamente o que é ser uma mulher.

Incriado

Incriado

Um espírito tímido
O espírito.
Não apenas o jeito de ser.
Repito “o espírito tímido”
Introspectivo.
Tanta calma é muita inquietação que não extravasa,
Ou não sabe como.
Implodir eterno de revoltas.
Revolta-se contra si, condena-se, executa-se.
Ressuscita ainda mais tímido de espírito.
Não confundam; espírito tímido, mas não pequeno.
É tão imenso que não cabe em si
Mas não sabe sair, espírito tímido.

Pesa dentro do corpo,
Fardo?
Sente-se chumbo em momentos
Pena em outros
Ora luzente
Outras um céu sem estrelas

Dodecaedro de sentimentos
Vida geométrica
Escolhas diagonais
Pensamentos em parábola
Atitudes equacionais.

Saudade de si mesmo em lampejos
Desfigura-se no opaco espelho
Disformes devaneios.
Assimétrico raciocínio
Fantasioso existir.
Espírito retraído. Incriado?
Princípio sem princípio.
Espírito quieto,
Não confundam, espírito quieto, mas não imóvel.

Leis da física, reflexão não-inércia.
Em repouso o corpo.
Descrevendo trajetórias a mente.

Química opinião,
Ácida, corrosiva, abrasiva,
Às vezes neutra (bom senso).

Histórica memória,
Cronológicas manias,
Antigas paixões sempre novas.

Geográfico sorriso,
Coordenadas do bom humor
Rosa-dos-ventos das escolhas.

Mapa de tesouros
Pirata de si.

Ai de mim que não sei se sou eu mesmo.

Psicologia Canina

Psicologia Canina

Olá mais uma vez! Que ‘mundo moderno’ esse nosso não? ‘Spa para cães’, aniversário pra cachorro, culinária canina. Moderno agora é tratar cachorro como ser humano. E o ser-humano? A gente trata como cachorro? É o que tem acontecido por todo o planeta. Mas vamos falar da “vizinhança”, ou seja, nosso país. Assisti esses dias uma reportagem sobre o tratamento ‘sofisticado’ dado aos cães em nosso país hoje. Até Psicólogo o bicho tem. “Ser cachorro ou não ser cachorro, eis a questão?” Quando eles, os cachorros, perceberem o quanto somos fúteis e seres dispostos a inventar inutilidades nos dominarão fácil. Claro, não incluo aqui todos, mas aqueles que não constroem antes uma relação de estima com um ser-humano. Não que o seu amigo humano seja um animal racional de estimação, mas o importante em nossa revolução humana não está acontecendo, a ‘aproximação desinteressada’. Também não estou aqui condenando aqueles que se importam com os animais, eles(os animais e os que cuidam deles) são importantes em nosso ecossistema e somos nós(os que não se importam) os seres nocivos em relação a eles; é o que prova toda extinção de qualquer espécie animal pelo homem. Claro, ver um animal enfermo e agonizando nos causa uma preocupação em salvá-lo, afinal é um ser vivo, mas não é tão vivo o menino de rua que não tem o que comer, não são tão vivos aqueles que sofrem na seca de nosso sertão e aqueles que trabalham feito ‘condenados’ pra receber ‘migalhas’ de uma classe que se preocupa em “como anda o estado mental de seu cachorro?”. Eles se preocupam mais com o bem-estar de seu animal irracional de estimação do que com aqueles que ajudam a dar esse tratamento V.I.D.(Very Important Dog) à seus bichos. Não só os cães; há outros animais que recebem ‘do bom e do melhor’ enquanto recebemos ‘do mau e do pior’. Do mau governo dos piores homens.E não se sinta mal se voçê cuida bem do seu animal de estimação, sei que ele lhe faz companhia, está com você há um bom tempo, entendo perfeitamente que tem uma relação afetiva com ele, mas não podemos esquecer da afetividade com ‘o outro’, os necessitados homens que dariam tudo pra ter um tratamento V.I.D. . Não ache tudo isso engraçado quando assistir animais nas Video-cassetadas do Faustão; não pense que está sendo um bom, e exemplar, ser humano só por cuidar de um animal; a parte humana que tem em você é constituída na relação que constrói com os outros seres humanos. A reportagem falou, entusiasmada, daqueles que tem essa consciência humanitária(a de ‘tratar bem’ seus cães). Sabe quanto custaram as três sessões do Psicólogo Canino? 320 R$ !!! E pasmem, o cachorro que antes latia demais (coisa completamente natural) ficou mais calmo! E teve ainda mais; massagem pra cão, yoga pra cão, esteira na piscina para cão. Ufa! O cachorro faz muito mais coisas do que eu em apenas um dia. Daqui a pouco ele vai escrever os textos no meu lugar. Na verdade, ‘lati’ tanto aqui nessas linhas que já estou pensando em ir para um spa pra aliviar o meu ‘stress canino’. Mas não vá maltratar um animal só pra se vingar de tal situação, quem merece nossa revolta são ‘outros animais’ mais cheios de privilégios ainda, aqueles ‘cães’ que abanam sempre seus rabinhos em época de eleição. Olhem uma propaganda de um Spa canino: “Inauguramos o conceito de ‘spa para cães’”. Agora é um conceito!É irresistível não rir racionalmente de toda essa situação irracional, mas pense em um homem retirando comida do lixo para alimentar seus filhos enquanto um cão de um rico empresário tem uma culinária própria. Isso não teve, tem ou terá graça nenhuma.

Prazer em conhecê-lo(a).

Antes de qualquer coisa que eu possa aqui dizer vou primeiro alerta-los. Não direi quem sou, não assinarei nenhum dos textos; meu pseudônimo será “O não-escritor”. Não que eu; ínfimo conhecedor de nosso idioma desprestigie os Escritores, só considero que em relação à eles sou tão insignificante (ainda) que nem existo, sou um não-ser, ou seja, o “não-escritor”; e não trata-se da falsa modéstia de um pretensioso, é apenas consciência de minha pouca habilidade com a arte de escrever, mas não serei um inábil pra sempre, pois todos podem(ao menos me iludo com isso), quando tem oportunidade e se dedicam, ser o que quiser(psicologia barata essa minha, mas como eu sou pobre só deu pra comprar essa!). Vamos ao que interessa então: meu primeiro texto.
Prazer em conhecê-lo!
Desvirginarei aqui minhas primeiras linhas juvenis, será mais uma conversa do que um texto literário propriamente, não terá lirismos, dramas com clímax arrebatadores, assuntos inovadores (ainda!), terá rima em algumas frases, e isso será mais conseqüência natural do meu escrever do que qualquer outra coisa. Minha conversa é dirigida a você, que se dispôs a ler essas palavras verdes que, quando ficarem maduras, com o tempo irei colhe-las (publicá-las), então saberão quem sou. Algumas palavras amadurecidas cairão, iguais as mangas do nosso C.H. e ficarão perdidas, apodrecidas. Outras cairão e chamarão atenção (serão os textos críticos inevitavelmente). Serei o mais corrosivo que meu senso crítico permitir, criticarei da formiga ao elefante, mas não se preocupem, pois nunca desrespeitarei ninguém. Criticar não é apontar o dedo e dizer que não está certa tal coisa; é entender aquela coisa, quem fez aquela coisa, porque fez aquela coisa e comparar aquela coisa com outras coisas semelhantes, então depois você ‘implica’ com a coisa. É coisando com a coisa que se aprende a coisar. Perdoem meu momento coisificante, mas hoje estou de bom-humor. E não queiram ver textos do ‘humor mau’.Você deve estar se perguntado “por que essa besteira de não dizer quem é?”. Motivo simples, timidez. É, isso mesmo! E não pensem que é frescura ou charme, é que tenho esse problema de personalidade; e diferente de tantos, meu interesse não é construir a imagem, os “voçê é bom!”, “você tem futuro!”, nada disso. Minha arte (ainda, e eternamente, propedêutica) é algo que ainda não é minha de verdade, pois não a domino(e nem sei se quero dominar, detesto me achar possuidor das coisas). E não é demagogia a minha aparente retórica (de retórico não tenho nada!), encare todo meu desinteresse por esses ‘Louros da Vitória’ como uma crítica àqueles que almejam não só os “Louros” mas a árvore de toda a vitória; que eles tenham um bom relacionamento pansexual. Passadas essas poucas linhas talvez você esteja maquinando aí em seu cérebro: “mas quando você colocar os textos no flanelógrafo vou descobrir quem é!” Muito simples, todo Dom Quixote tem o seu Sancho Pança, e mesmo que meu Sancho não seja tão pançudo assim ele será um bom escudeiro, portanto não serei eu meu(minha) caro(a) amigo(a) que colocarei os textos aqui, e não adianta indagar-lhe sobre o assunto caso o veja colocando o texto, ele não dirá. E apesar do que esse mundo nos mostra, ainda existem amigos de verdade em que podemos confiar (sendo simples e sincero). Muito escrevi e nada disse, mas o que é toda essa retórica de nossos jornais, revistas, rádios, televisões e ‘internets’ senão uma retórica parcial e interesseira. Epidemia de Dengue? A verdadeira epidemia são aqueles que sabem que podem acabar com ela também e nada fazem: NÓS! E antes que me tomem por um revolucionário comunista vociferante, não quero revolucionar nada além do que o próprio ser humano, não quero comungar nada além do que a razão em nossas mentes e não quero vociferar nada além do que um mero “prestemos atenção Cientistas-Humanos!”. ‘O Não-Escritor’.

Motorista pára fora da parada e abala sistema

Motorista pára fora da parada e abala sistema

No dia 26 de Março de 2008 um motorista parou o ônibus coletivo fora da parada e abalou o sistema. Por volta das 10:00 PM uma mulher pediu para descer na esquina em vez de descer na parada que ficava mais distante de sua casa, então o motorista disse que não podia faze-lo, pois iria contra o sistema. A mulher não insistiu, mas o motorista refletiu sobre a questão e resolveu parar na esquina, não sabemos se porque estava tarde e seu cavalheirismo não deixaria a mulher percorrer uma distancia maior ou se ele refletiu sobre o porque de obedecer a esse sistema. Não se tem certeza de nenhuma das hipóteses anteriormente citadas, mas tal ato abalou todo o sistema de transportes coletivos. Todos os motoristas começaram a parar fora de suas respectivas paradas. Chamaram de “movimento sem parada”, e todos que usufruíam do transporte coletivo estavam aprovando, pois quem não gostaria de descer um pouco mais próximo de casa? Mas logo que tal movimento chegou ao conhecimento autoridades competentes (?) os motoristas foram informados pelas respectivas empresas que deveriam seguir o itinerário das paradas, pois a Prefeitura gasta dinheiro colocando as placas nos postes para servir de parada; e informaram também que deviam fazê-lo porque senão ia virar um caos se todos querendo parar na próxima esquina e ficaria difícil cumprir os horários. Dito isto os motoristas começaram a atender. Na semana seguinte a população começou a reclamar. “Que absurdo, são só alguns metros!”, “É motorista, deixa ela descer na esquina!”, começou a aumentar as discussões dentro dos coletivos, e sobrava stress para quem não podia mais descer onde queria e pro motorista que só não recebia nome de santo. Toda essa situação foi se agravando até que um dia uma tragédia aconteceu: um motorista; de tão revoltado com todo aquele ‘inferno’ cotidiano, resolveu parar onde todos queriam. E ele fazia isso todos os dias, até que a fiscalização o flagrou em tal ato. Foi chamado o motorista pra se esclarecer na diretoria da empresa. Nada foi relatado da conversa que aconteceu entre patrão e empregado, mas sabe-se que o motorista voltou a suas atividades normalmente e digo mais, continuou embarcando e desembarcando as pessoas onde queria, e na empresa ele era o único com tal dever. O que esse motorista deve ter dito em sua conversa com seu patrão?

_________________________________________________________________________

Não percam! Na próxima edição a entrevista com o motorista.

Explicar o inexplicável?

Explicar o inexplicável?

Cisco no olho. Assim sinto o incômodo hálito do inexplicável, mas que coisas realmente já foram explicadas? A soma de 1+1=2? Por favor, não me venha com a lógica dos números, se vier com esse argumento não continuo mais esse texto. Se está disposto a lê-lo desfaça-se dessa lógica pueril meu (minha) caro(a). Imagine aí a mediocridade de se pensar apenas numericamente o mundo, voçê daqui a pouco vai pensar que um ser humano é apenas mais um número em meio a tantos e nada mais. Assim pensavam os médicos nazistas quando faziam suas terríveis experiências com os judeus, e não convém aqui cita-las, pois por mais palavras escabrosas que eu aqui coloque pra relatar esse momento da história, elas nunca alcançarão o horror do que realmente foi. Portanto cabe a mim apenas discorrer sobre a ‘inexplicação’ das coisas. E não espere uma obra interminável, com varias páginas maçantes do mesmo discurso apenas dito com outras palavras pra parecer mais vendável. Comecemos então pela existência de algo além da realidade material, dos objetos vistos, palpáveis, cheiráveis e saboreáveis; falo aqui dos sentimentos, algo que não se vê, nem se toca, nem se cheira e nem se saboreia. Chamarei de ‘algo’ por não ter definição concreta possível do que vem a ser um sentimento. Anteriormente Anaximandro de Mileto denominou ‘ápeiron’ como substância indefinível para designar o infinito, ilimitado e dele, por segregação, derivam os diferentes corpos, cabe ressaltar aqui que estava essa idéia inserida em um âmbito de investigação natural da realidade, uma cosmovisão ainda, mas só o fato de ser indeterminado tal princípio já esboça algo além do apenas do mundo sensível. Tomando por base tal idéia então lanço a pergunta: como definir o indefinível? Seria esforço de mais 2 milênios creio, para se chegar ao começo do esboço de tal pintura, portanto não tentemos responder (ainda) tal pergunta, vamos prosseguir o raciocínio. (Se for possível, é claro, pensar racionalmente sobre o indefinido, esse ‘algo’ que sentimos). A maioria de nós foi orientado que o sentir no contexto humano é um sentir análogo ao dos animais, que não tem consciência exatamente do ‘que’ e ‘porque’ sentem. Tendo estabelecido isso nos imaginamos seres dotados de consciência da própria consciência e sem poder escapar dessa conclusão o ser humano está fadado, ou abençoado, a viver e saber que vive, perguntando-se ‘porque vive?’ e ‘para que vive?’. Partindo desse ponto então, temos os sentimentos sensíveis, experimentados pelo corpo e pelas funções que ele desempenha, como tato que toca uma áspera parede, e além desses sentimentos sensíveis temos os sentimentos inteligíveis que ‘experimentamos’ subjetivamente, sem bases corporais, como por exemplo o amor, o ódio, a inveja, a compaixão, o rancor, a felicidade, sentimentos estes sentimentos ainda não explicáveis, pois quem nunca teve um sentimento por algo ou por alguém que não soubesse explicar exatamente, mesmo um estudioso de tais assuntos psíquicos não sabe exatamente porque ama sua mulher e filhos, ou voçê acha que ele os ama só por que tem um cérebro que processa essas informações sentimentais? Não descarto aqui a importância do corpo enquanto veículo de tais fenômenos, ele é o canal, a via condutora de se sentir um ‘algo’ indefinível, pois quem me garante que depois de findado o corpo ainda sejamos capazes de ainda sentir? Portanto não entremos em um racionalismo e não vamos esquecer do corpo enquanto capaz de também experimentar (e constituir, e conhecer) a realidade.

O surdo

O surdo

I

... na noite nada silenciosa a chuva cai, em seu líquido cair. Venta leve sobre as casas balançando algumas antenas espinha-de-peixe; reverbera nos telhados das casas o assobiante vento. O dia fora ensolarado, como costumeiramente são os dias nessa cidade calorenta. Muitos resmungos ouviram-se de dia a respeito do sol, clamores por chuva em pleno meio dia escaldante. Assim começou o dia que acabou em uma noite chuvosa. A casa em que agora gotejava internamente era pequena, de fora dava a impressão de ser bem maior, mas não era, apenas quatro compartimentos mal mobiliados. Garagem, sala, quarto, banheiro e cozinha. O quarto era o compartimento afetado pelas goteiras, as paredes verdes com infiltrações, o teto de cor branca que parecia uma peneira a peneirar água; e ali no chão de azulejos amarelados encontravam-se algumas panelas que ressoavam o tilintar dos pingos inquietantes, pois quem ali dormia não conseguia concretizar o verbo dormir.

- Droga de chuva!

E tantos a pediram ao meio dia. Levantou-se ainda no escuro e procurou o sofá, azul de três lugares, na sala. Detestava dormir ali, pois sempre acordava com as costas doloridas. E a dor veio antes do amanhecer. Levantou-se novamente e armou sua rede, ela estava umedecida porque não secara completamente quando foi retirada do varal à tardinha, era uma rede grossa difícil de secar, seria preciso um sol a pino durante algumas horas para sair sequinha. Deitou-se nela e balançou um pouco até cair no sono novamente. E minutos antes de acordar para ver a nova manhã teve um sonho.

Viu primeiro um grande monumento, erigido até os céus, de alvo mármore era aquela figura aparentemente humanóide. Olhou para a esquerda e viu casas tão pequenas quanto caixas de fósforos, pareciam casas de maquete em um projeto de arquitetura; fazia calor, mas este parecia irradiar de seu corpo que formigava inteiro; com o canto dos olhos captou relâmpagos, o céu opaco sem sol. Tentou tocar a figura marmórea que vira primeiro, mas toda vez que estendia o braço, este diminuía. Tentou fechar os olhos, mas não conseguia encostar as pálpebras, esforçou-se, mas os olhos permaneciam da mesma forma, olhou para as próprias mãos e viu que ainda eram as suas. ‘Mas porque diminuíam os braços quando tentava tocar o mármore?”. Novamente tentou, novamente não alcançou. Sentiu um enfurecer e logo em seguida a figura monumental começou a desfazer-se diante de seus olhos como se fosse feita de pequenos seres formigóides que haviam se solidificado, mas que agora caminhavam uns sobre os outros desconstruindo o que ali formavam; e nessa desconstrução desabavam com um estrondo ensurdecedor que o fez acordar aturdido e estranhamente com dor nos tímpanos.

- Ai! Meus ouvidos!

Falou sem saber, ainda, que havia perdido a audição. Aturdido levantou-se e os raios do sol, através das persianas da janela, invadiu seus olhos. O lado das janelas de madeira era voltado para a rua e para o nascente e assim a claridade invadia sempre sua casa ao amanhecer. Estranhou o mundo está tão silencioso, até comentou em pensamento:
- Hoje parece domingo!

Mas era uma terça-feira, dia em que muitos no seu quarteirão acordavam cedo. Dia em que os pássaros não dormiam até tarde como faziam no domingo. Olhou pelas persianas, que estavam cheias de teias de aranha, e viu pouco movimento, quase nenhum. Foi até o quarto, as panelas, no chão, estavam cheias da chuva que pingara do teto; olhou as horas no velho rádio-relógio, que ultimamente era mais relógio do que rádio, ‘uma queda às vezes desregula algumas funções’, foi o que seu vizinho, com curso em eletrônica lhe disse. Mal sabia ele que por mais que consertasse a primeira função daquele aparelho eletrônico não iria mais conseguir ouvi-lo. Depois de conferir as horas caminhou até o banheiro, bocejou antes de abrir a torneira, e quando viu a água descendo e escorrendo na pia, percebeu que não conseguia escuta-la. Aproximou a cabeça da torneira tentou escutar com os dois ouvidos, mas não conseguiam mais cumprir suas funções fisiológicas comuns. Pensou que estavam entupidos, ou coisa parecida, estendeu a mão para pegar na prateleira um contonete, limpou um, depois o outro ouvido, então se concentrou na água que escorria. Pensou ter escutado um barulho aquoso, mas era apenas pensamento, uma lembrança do som que havia escutado tantas vezes em manhãs de escovação de dentes. Não se desesperou, e só não agiu desesperadamente porque pensava ser uma coisa irrelevante. Lembrou de uma solução maternal para ouvido entupido: um pingo de álcool em cada cavidade auricular. Não resolveu. Mas nunca acreditou muito nessas simpatias populares. “Mas devia, algumas dão certo”. Dizia sua mãe.

- Ah! Vou é trabalhar.

Tomou seu banho, no chuveiro em que a água não caia com tanta intensidade, ‘problema no encanamento’, falara o encanador que aconselhou trocar todo ele, mas as condições financeiras não permitiam nem trocar a tampa do alvo vaso sanitário, com sua borda cheia de lascas. Não escutava o som da água à escorrer por seu corpo, mas pensava agora em uma música muito popular na coleção musical de muitos jovens e cantou seu refrão, “ eu vivo sem saber até quando ainda estou vivo, sem saber o calibre do perigo, eu não sei daonde vem o tiro”. Um jovem de 37 anos num país em que a expectativa de vida é de 72,3 anos. Nesse caso já está na metade de sua vida, na verdade um ano a mais da metade. Era um sujeito otimista, esperava chegar aos 100; e esse homem não ligava muito pra questões temporais rotuladoras, ainda vestia as mesmas roupas de sua juventude, não era muito de seguir tendências, estar na moda pra ele era uma calça jeans, cuecas samba-canção, uma blusa monocromática sem estampa, meias de algodão e tênis confortáveis. E após o banho colocou sua toalha no varal na parte da área de serviço, e nu em pêlo andou até o quarto. E só o fazia porque morava só; e não discordava dos nudistas apesar de não ser um, mas certo dia ele pensou enquanto assistia uma reportagem televisiva sobre nudismo, “mas não somos todos nudistas, pois quem nasceu com roupa?”. Tinha esses pensamentos levianos e sarcásticos sempre que assistia essas reportagens sensacionalistas.
Chegando no quarto topou em uma das panelas, que virou e derramou toda a água que nela havia.

- Pronto, agora não precisa nem lavar mais o quarto! Porra!

Gostava sim de alguns palavrões, “mas quem não tem seu vocabulário particular deles?”, dizia sua professora de ética da faculdade.
Vestiu suas roupas: cueca samba canção preta, calça jeans, meias de algodão, tênis confortável e uma blusa de gola pólo verde escura. Olhou-se no espelho, aproximou a orelha direita pra olhar se havia alguma coisa errada. Observou, mas viu que ainda estava no mesmo lugar de sempre. Colocou o dedo indicador dentro da cavidade auricular e chacoalhou, depois ligou o microsystem e colocou o cd “Acebolado” da banda ‘Tianastácia’, 1ª faixa “Cabrobró”. Aumentou o volume, a música matinal antes de ir para o trabalho: vendedor numa loja de cds e dvds virgens; era responsável pelo caixa. A música começou, “Ouvi falar loucura vem de berço...” mas ele, mesmo atento, não a escutou. Então todo aquele desespero que não tivera, agora transbordou feito a música frenética que envolvia o quarto “Meu pai falava prá eu andar sempre na linha, só transá com camisinha prás ‘muié’ não engravidar...”.
Desligou então o som, não precisava; pois não escutaria mesmo. Sentou-se na cama, que ainda estava desarrumada e esfregou os olhos ainda com sono, mas a umidade que brotava daquelas glândulas lacrimais não era apenas sono; começou um choro, mas não o terminou, não acreditava ainda que estivesse sem audição, pensava ser sua imaginação, sempre fértil. Riu em meio algumas lágrimas, um sorriso esperançoso no começo, mas depois se formou uma expressão engilhada em sua boca. Alguns instantes depois todo seu rosto estava marcado por rastros de choro. Gritou e se escutou internamente, então a dor tornou-se maior, prisioneiro o som das coisas estariam apenas em sua mente que se lembraria das diversas sonoridades do mundo, mas nunca mais iria escuta-las novamente. Olhou para as paredes brancas de seu quarto e pensou em esmurrar cada uma delas. Um bom tempo passou ali, trinta minutos, revolvendo a questão, não estava nada tranqüilo. Nessa meia hora andou pelo quarto, mexeu em alguns livros desarrumados, tentando assim arrumar alguns pensamentos que lhe causavam calafrios. Pensamentos que não perdoariam nenhum dos vivos que amam suas vidas. Sentou-se no chão, encostado em seu guarda-roupas cor marfim já amarelecido pelo tempo e por seu descuidado com essas coisas. Ali escorou-se, com a mão direita esmurrou o chão ainda molhado, alguns respingos caíram em seu rosto que já se encontrava mais chuvoso que a noite anterior. Olhou para o chão, e este refletia sua silhueta, pensou mais uma vez que era tudo um momento ruim de ‘stress’ que as pessoas hoje em dia tanto falam. “É o stress”. “Estou com uma ânsia inexplicável...” “É o stress”. Riu, mesmo em um desgraçado momento, pois dias atrás tinha dito a sua amiga de faculdade:

- Daniele, sabia que o stress é o mal do novo século. Século XXI. A ‘doença’ da moda. Tudo é stress. Nada é outra coisa além de stress. Fico ‘estressado’ com esse tal ‘stress’.
-
Ela riu, como só ela conseguia rir, um mero ‘hum’. E isso era o mais expansivo que ela conseguia ser. E sempre sagaz em suas palavras ela comentou:

- E depois que o stress passar, o que nós, seres à procura de tantos males pra nos acharmos capazes de supera-los, vamos encontrar para ser o nosso mal, o que será? Teremos a capacidade um dia pra parar de nos martirizarmos tanto em nossa vida e realmente começar a viver? Pois hoje mesmo estou com uma ânsia inexplicável, e por isso vou dizer que é stress; pois vou fazer tudo errado em minha vida e vou culpar o stress pra não ter que assumir minha própria culpa. Pronto vou destruir o mundo e se Deus vier me perguntar: ‘Porque fez isso Daniele?’ Aí eu digo: ‘Ora, estava estressada meu Deus!’.

Ainda rindo, ele deixou essa lembrança se esvair de sua memória, pois o que o afligia agora era mais do que apenas um reles stress. Sua audição se foi, não sabia como isso aconteceu. Está privado agora de não mais escutar as vozes que tanto adora, sua mãe Irma, sua irmã Rafaela, seu irmão mais novo Alberto Jr; e sua amiga Daniele que tem uma voz que o faz pensar em cinema. Nada mais desses timbres conseguirá escutar, dali em diante toda uma vida de silêncio está reservada para ele. A música “Luzes” da Plebe Rude não mais ouvirá para fazer seus dias mais felizes e dançantes. Não irá mais chorar ao ouvir “Hurt” de Johnny Cash. Um vazio sonoro está reservado àquele homem.

------------------------------------------------------------------------------------------------------------

... é manhã; nas ruas muitos corpos estendidos. Estão vivos? Muitos diriam que sim, pois respiram e andam e comem e falam. Vivem.

--------------------------------------------------------------------------------------------------------


II

Era a década de 80, muitos momentos inesquecíveis dessa época não saem da cabeça dessa mulher, sua infância matinal cantando com todas aquelas apresentadoras de programas infantis. Tinha muitos Vinis de todas elas. Adorava A Turma do Balão Mágico. Hoje em dia rememora essa época em festas temáticas nos finais de semana de sua vida já sem aquela graça pueril, hoje ela escuta aquelas mesmas musicas, mas agora toma muita bebida alcoólica enquanto ‘curte’ a festa que também era festa em sua infância. Enquanto o som traz até seus ouvidos o “Superfantástico amigos que bom estar contigo...”, ela vira mais uma dose de tequila e seus amigos e amigas comemoram a ‘virada’. Ela olha para cada um deles e já não os distingue mais, sua vista está turva, o mundo parece querer derruba-la, mas antes que ela caia sua namorada a segura e a arrasta, literalmente, para o banheiro. A boite onde se encontravam não fazia distinção entre gêneros nos banheiros, eram toiletes unisex. Elas duas então entraram em um qualquer e começaram a discussão, na verdade a namorada dela começou, pois a que estava sendo arrastada não tinha muitas forças nem pra falar:

- De novo Júlia! Porra! Já não falei pra não ficar se exibindo! A gente sabe que você bebe e é dura na queda! Quantas vezes tenho que te arrastar até o banheiro pra você vomitar e poder ir pra casa!? Quantas!?
- Ah!....Meu amor....eu to...bem, Lane...bem...meu bem...
- Tá bem!? Desse jeito!? – Lane então tira o anel de seu dedo, guarda-o na bolsa, abre a boca de Julia e enfia o dedo em sua goela. O vômito inevitável. A pia do banheiro, iluminado por uma luz néon vermelha, fica toda suja. Lane limpa o rosto de Júlia, esta ri como se o mundo fosse o melhor dos lugares, como se a vida fosse pra sempre, como se as guerras não mais existissem, como se a fome não assolasse mais os povos miseráveis, ri e não pensa em mais nada além da sensação de sentir-se viva. Lane a senta num dos vasos sanitários em umas das cabines. Dois homens entram beijando-se ardentemente como se fosse o último beijo de suas vidas e em seguida pedem desculpas e saem ainda se beijando. Júlia, sentada no vaso sanitário, ri disso e aponta dizendo:

- Eita! Ca...ras ... apai...xo... nados!

Lane a repreende e bate em sua mão, e após limpar a pia pega mais papel higiênico e limpa a boca de Júlia. Lane era uma mulher jovem, apenas 29, de pele morena, longos cabelos castanhos encaracolados, olhos verdes, herança genética de seu pai, um queixo com uma covinha, e não media mais do que 1,62m, mas tinha braços fortes, muitos ficavam admirados como ela tinha um corpo tão definido sem fazer exercícios. Ganhava muitos assobios nas ruas em que passava, mas sempre os desprezava. Vestia-se bem para os padrões atuais, um vestido preto com detalhes prateados nas alças e em seu pescoço descansava uma gargantilha com um pingente em forma de cruz, apesar de não ser religiosa. Fora presente de sua mãe, que falecera há um ano. Olhou para Júlia que estava cambaleante mesmo sentada. Júlia era uma moça ainda mais jovem, tinha feições infantis ainda em seu rosto, apesar dos 20 anos, sua boca era carnuda e bem maquiada, sua pele alva, seu cabelo preto era curto e liso em um corte da década de 20, um que de ‘chanel’, era magro seu corpo e alto, para padrões femininos de altura, que media 1.72m. Encarou Lane, apontou o dedo longo e alvo para ela, mas nada disse, apenas riu e baixou a cabeça bruscamente, as tequilas fizeram o efeito. Lane a segurou para que ela não caísse para os lados ou para frente, a encostou o mais confortavelmente possível ali e esperou ela dormir um pouco até que resgatasse suas forças pra pelo menos sair andando dali. Muitas músicas foram tocadas enquanto as duas ali permaneciam, muitas pessoas entravam e saiam do banheiro, os amigos vieram e perguntaram se estavam bem, Lane riu um riso melancólico e disse que ‘sim, é só mais uma noite daquelas!’, eles então voltaram para dançar, pois a música não parava, dessa vez era Raul Seixas a voz que atravessava a porta do banheiro, “Let me sing, let me sing, let me sing my blues and go...”. No fim da faixa, Júlia acordou subitamente, cantarolando:

-“...só vim curtir meu ‘rockzinho’ antigo...”

Lane a encarou, com olhos que até o mais ameaçador dos homens temeriam olhar. Puxou algo de dentro de sua pequena bolsa preta de couro com alças em forma de argola cor de bronze, entregou o objeto a Júlia, que estava mais recomposta, e então saiu do banheiro feito relâmpago cruzando nuvens. Júlia olhou o que lhe foi entregue, o ambiente avermelhado pelo néon, acima dos espelhos, não dava muita iluminação para ela discernir o que estava ali em sua mão, mas a porta nesse instante foi aberta por um homem bem vestido que falava no celular algumas palavras vulgares enquanto tocava por sobre as calças, com a mão direita, em suas próprias partes intimas; Júlia não percebeu o homem, pois a luz que viera de fora iluminou o objeto que ali estava e ela pode finalmente ver o que era: a aliança que Lane tirara do dedo e colocara na bolsa antes de ajudar Júlia a curar-se de seu porre. Júlia então riu de si mesmo e também de Lane ao olhar para a aliança; e ali, do lugar onde estava sentada, falou segura de si:

- Com essa são 5 vezes!

Mas mal sabia ela que seria a última, das tantas vezes.
Lá fora Lane chorava, enquanto tentava ligar o carro, a chave teimava em não engatar na ignição, então ela parou respirou fundo, olhou-se no espelho retrovisor, seu olhar choroso e sua expressão de dor eram iluminados pelas luzes dos faróis dos outros carros que saiam do estacionamento, o flanelinha, bateu no vidro, dando um susto nela. Ela o encarou, pegou algumas moedas na bolsa e deu para ele, este agradeceu e foi para frente do carro para ajuda-la a sair, ela finalmente conseguiu ligar o carro, um Corsa de cor vinho, e dali saiu com muitas ponderações e lágrimas nos olhos. A estrada estava esburacada, a pavimentação em Fortaleza piora depois de algumas chuvas. Tentava desviar deles, mas desviar de um buraco era dar com as rodas dianteiras ou traseiras em outros, manobrava com dificuldade, mas logo saiu da estrada acidentada, estava agora na Av. Domingos Olímpio e o sinal ficou vermelho no cruzamento com a Pedro I. Diminui a velocidade antes de chegar a faixa de pedestres, pois estava tarde e era muito cautelosa em relação aos assaltos nos sinais. O sinal então ficou verde, acelerou e outro motorista não tão prudente quanto ela, em um Gol vermelho avançara o sinal da Pedro I e foi de encontro a lateral do carro de Lane. O estrondoso impacto lançou no ar o som de pneus que se arrastavam, vidros que se estilhaçavam em uma chuva de pequenas partículas cortantes, óleo derramando e o mais aterrador dos sons, o grito de Lane, despedindo-se de sua vida.

--------------------------------------------------------------------------------------------------------------
“... ouça-me bem amor, preste atenção, o mundo é um moinho...”. Escutou aquelas palavras, vindas de uma voz antiga. Tomou o último gole de café, acendeu um cigarro, andou até a varanda, observou o trânsito lá embaixo e deu uma boa risada pensando: “quando notares estás à beira do abismo...”
--------------------------------------------------------------------------------------------------------------


III

Ele desesperado andava por toda a casa pensando que o mundo havia acabado, pegou o celular e ligou para sua amiga Daniele. Ligou sem pensar muito, pois já não escutaria mais nada; e a voz dela não lhe chegaria mais até os ouvidos. Alguns toques e ela atende ainda sonolenta, eram 7:45.

- Daniele! Me ajuda!

- ...
Ela falou: “o que foi?”
Isso foi o que ela disse, mas ele não escutou nenhuma das palavras.

-Por favor! Vem aqui em casa hoje!

-...
Ela disse: “Não vai trabalhar?” Mas ele também não ouviu isto.

-Vem, por favor, preciso muito de voçê!

- ...
Ela disse assustada: “o que aconteceu Dário?”.

- Vem! E se vier, me manda uma mensagem dizendo a hora que voçê vem tá!? Manda a mensagem mesmo se não vier! – Ele agora, raciocinando, sabia que não a escutaria; e a mensagem seria a confirmação visível se ela iria ou não.

- ...

Ela tentou dizer “mas o que está acontecendo”, mas Dário desligou antes que ela perguntasse.

Daniele olhou as horas no enorme relógio de parede circular branco com ponteiros e numerações prateadas que havia no seu quarto, de paredes pintadas em tons azuis com partes rajadas em branco, assim como era o teto, que ela chamava de “meu céu, nesse inferno de mundo”, eram 7:47 AM. Puxou o lençol laranja que lhe cobria, soltou o celular na cama; e seminua, apenas de calcinha de algodão cor de rosa, andou até o banheiro, e ao cruzar a porta levou um susto, uma enorme aranha estava em cima da tampa da privada, colocou a mão direita nos seios e segurou o grito com a esquerda, olhou-se no espelho e riu ao ver sua própria cara de assustada, mas em seguida olhou novamente para o aracnídeo ali, que descansava ou a desafiava. Ela então pegou a vassoura atrás da porta, cuidadosamente para que a aranha não se movesse, em seguida se concentrou e com toda a força que possuía esmagou o animal, ali na tampa da sua privada que era uma tampa de madeira marrom com um assento alcochoado de mesma cor. Depois providenciou pano no armário que havia embaixo da pia do banheiro e limpou a sujeira e jogou o pano no cesto do lixo. Lavou as mãos, riu novamente para seu próprio reflexo, lembrando-se ainda do susto, mas logo se desfez o riso assim que lembrou da apreensão de Dário ao telefone, e com isso escovou os dentes mais rápido do que de costume, arrumou seu cabelo liso e loiro prendendo-o com uma liga verde, olhou seus seios no espelho, ficou feliz por ainda estarem bem firmes, foi até o guarda-roupas, retirou uma blusa sem olhar bem e veio uma blusa gola olímpica verde com estampas brancas em formas circulares nas mangas, esqueceu o sutiã, mas estava apressada, e não gostava muito do aperto que eles causavam, foi até o banheiro e na gaveta de cor marfim do armário do banheiro pegou seu batom laranja e o passou levemente nos lábios finos e avermelhados. Iria tomar banho, mas a urgência na voz de seu amigo era mais importante. Pegou seu celular e começou a digitar a mensagem : “Vô sair agora, chego em 45 min”, e ,enquanto a escrevia, saiu do quarto e foi até a cozinha, pegou um copo no armário de madeira alaranjada, colocou o café, ainda quente, que estava ali na cafeteira de vidro opaco; assoprou antes para sentir o aroma, pois adorava cheiro de café, bebeu o seu café da manhã e pegou em cima da mesa da sala de estudos, que era depois da cozinha, a sua bolsa inseparável: uma mochila estilo carteiro de cor acizentada com alguns bordados em cor branca, que eram várias formas triangulares. Conferiu seus documentos dentro da bolsa, dinheiro para passagem do ônibus, carteira de estudante e assim que cruzava a sala, quase sem móvel algum, apenas com um enorme tapete persa e uma mesa de centro de madeira negra, sua mãe, ainda sonolenta, gritou do quarto:

- Já vai sair Daniele? Volta quando?
- Daqui a mil anos mãe!

A mãe de Daniela, a dona Marta, viúva, sempre fazia essa pergunta, pois esperava sempre a mesma resposta. As duas eram únicas naquela casa agora, e relacionavam-se com muito bom humor, pois a perda do marido e pai, aos 55 anos vítima de um câncer no pulmão há dois anos, foi um momento angustiante e quase insuportável para elas duas, mas com tal desgraça elas se aproximaram mais do que nunca, pois não perderiam mais tempo em discussões banais entre mãe e filha já que perceberam o quanto a vida pode ser breve; e perder tempo se odiando enquanto podem se amar seria abreviar ainda mais essas vidas, que agora estavam sem a presença do bom marido e pai que foi o Senhor Antônio.
Daniela fechou a porta de sua casa e a grade depois da porta. Olhou para o céu ainda sem nuvens, viu o movimento em sua rua, que era bem arborizada; passou por alguns vizinhos e deu bom dia, por outros e nem olhou nos olhos. Andou três quarteirões e já estava na parada na Avenida Augusto do Anjos, próximo a Lagoa da Parangaba. Esperou alguns minutos pelo ônibus. Ponderou mais uma vez o que havia acontecido com Dário pra falar daquela maneira e assim que terminou sua ponderação, o ônibus já chegara. A viagem durou 30 minutos até chegar ao ponto de desembarque que seria na Rua Paraíba. Forçou um pouco a passagem entre as pessoas, que lotavam o transporte coletivo, para conseguir descer, deu sinal e conseguiu sair. Finalmente suspirou aliviada, enxugou o suor da testa alva e andou dois quarteirões até chegar a casa de Dário.


--------------------------------------------------------------------------------------------------------------
... abriu os olhos e os mesmos prédios ali estavam. Permanecia deitado. O chão duro não era mais desconforto depois de dez anos dormindo nele; acomodou-se de lado, viu algumas pernas cruzarem sua vista, pernas apressadas quase esbarrando umas nas outras; e pensou: “daqui a pouco pisam em mim”.
--------------------------------------------------------------------------------------------------------------

IV

As sirenes em seu estridente som, a luzes avermelhadas rodopiantes, o ‘transporte dos enfermos’; quem para ali se destinava padecia da mais severa das doenças: a vida quase ida. O corpo de Lane, inerte, aparentemente sem vida, o sangue que se esvaia pela fresta da porta amassada do carro, que entrara devido ao impacto, esmagando o seu braço esquerdo, algumas lacerações no rosto causadas pelo vidro da janela que se estilhaçou numa chuva mortal e cortante. A remoção do corpo foi demorada, alguns carros que passavam pelo local do acidente diminuíam a velocidade para ver o que aconteceu, algumas pessoas se benziam para que na próxima esquina não acontecesse o mesmo consigo, outros pensavam apenas em seus carros e no quanto eles foram caros pra se estragar assim em um acidente e esqueciam até de pensar em si, outros nem olhavam direito; e quase nenhum se importou se houve vítimas. Finalmente os homens do Corpo de Bombeiros conseguiram arrancar a porta e retirar Lane dali. Tiveram cuidado, pois tinha sido um grande impacto e o corpo humano que é frágil não suportou. Levaram-na até a maca, o paramédico consultou o pulso, balançou a cabeça para o amigo que o ajudava, ele então trouxe o desfribilador. Alguns solavancos no corpo de Lane após as descargas elétricas. Um homem que passava ali perto, um vigia de uma das lojas do centro da Cidade, era o único espectador pedestre do que acontecia, se benzeu enquanto Lane recebia outra descarga elétrica. Os paramédicos se olharam, e apenas com gestos nos olhares confirmaram que não havia mais chance alguma. Então começou a chover, uma fina chuva, que da imensidão e do distante céu começava a cair. Os homens da perícia de trânsito chegavam para avaliar a situação, o homem que causara o acidente; um senhor corpulento, de bigode e grandes olheiras e um cabelo curto e preto, foi quem ligou para os bombeiros e agora iria prestar seu depoimento e antes que começasse a falar, na maca o corpo de Lane estremeceu levemente, apenas o homem, o vigia que estava na esquina do cruzamento e que rezava pela alma daquela jovem mulher, viu o espasmo e andou em direção até um dos paramédicos :

- Ei Enfermeiro, a moça se mexeu.

O paramédico olhou para o homem com um olhar desdenhoso, pois já tinha checado o pulso e aplicado o desfribilador nela, e não acreditaria naquele homem sem instrução médica, mas como seu amigo, que era mais esperançoso do que muitos, também ouviu o que o vigia dissera, então propôs usar mais uma vez o aparelho para tentar ressuscita-la. Assim o fizeram, e o solavanco novamente, o corpo de Lane reanimou-se, voltara do estado inerte, o paramédico conferiu e sentiu que havia pulsação então, checou as retinas, estava viva. Com velocidade então a colocaram na ambulância, a sirene soou mais alta na silenciosa madrugada chuvosa de Fortaleza, e o vigia, um homem de cor parda e aspecto jovial mesmo em seus 42 anos, olhou para os céus cinzentos de nuvens, beijou o pingente do cordão que pendia do seu pescoço largo, era a imagem de Cristo crucificado.

- Graças a Deus!

A chuva aumentou , e começou a ventar um vento assobiante por entre os telhados das casas velhas do centro da cidade, os bueiros começavam a transbordar de lama, enormes poças d’água se formavam no esburacado asfalto das ruas. O vigia correu até a proteção de um Toldo verde de uma Lanchonete, sacudiu a camisa que se molhou um pouco, puxou do bolso da calça jeans uma carteira de cigarros Mistral quando ia acender o cigarro com o isqueiro lembrou do espasmo do corpo da moça que só ele viu, então olhou para o cigarro depois olhou para o local do acidente vendo a porta do carro estraçalhada e o sangue no asfalto que agora se misturava com a água da chuva, observou os homens da perícia trabalhando, alguns minutos ponderou e no lixeiro que estava ali encostado no poste ele jogou a carteira de cigarros.

--------------------------------------------------------------------------------------------------------------
... a chuva perturba o sono daqueles que não tem teto, e também daqueles que tem um teto mal ‘telhado’; e até aqueles que tem um bom forro em suas casas sofrem com a chuva que goteja e infiltra. Não há como escapar dela, pois modifica a rotina dessa Cidade tão desacostumada (e despreparada) para uma boa chuva.
--------------------------------------------------------------------------------------------------------------

V

Paciente esperava Dário, ali ainda enxugando as lágrimas para que sua amiga não visse, mas ela sempre sabia quando ele chorava, era um incomodo pra ele a percepção apurada dela. Ela então bateu na porta, mas Dário não a percebeu por isso, mas por causa da sombra que ela projetava nas frestas das persianas das janelas. Levantou-se do sofá e abriu a porta depois a grade, Daniele entrou rapidamente, o sol lá fora a deixara com a testa suada, estava com o cabelo loiro amarrado, sentou-se no sofá jogou a bolsa em cima da mesa de centro que tinha uma das pernas tortas, Dário prometia sempre conserta-la. Daniele sempre ficava a vontade na casa de Dário, considerava a extensão de seu quarto, de vez em quando ela até arrumava alguns móveis na casa de Dário dizendo pra ele que estavam mal colocados nos cantos, e daquela forma a casa pareceria mais espaçosa, ele nem ligava para isso e apenas balançava a cabeça fingindo concordar. Dário então fechou a grade e a porta, a sala ficou mais escura, pois as persianas da janela estavam fechadas, ele então acendeu a luz e sentou-se no sofá ao lado de Daniele, ela começou a falar mas ele logo a censurou, pediu que ela ouvisse apenas:

- Daniele, estou surdo! Não consigo ouvir nada, me ajuda! Você está me ouvindo? Por favor diz que sim!

Daniela, uma mulher que poucos conseguiam impressionar, não teve reação diante de tal situação, olhou para Dário, tentou discernir se ele estava mentindo, mas viu que em seus olhos muitas lágrimas haviam sido choradas, então abraçou o amigo, e o afagou nas costas e no cabelo, e ele não podendo mais conter sua pose hipócrita masculina de homem que não chora, desatou em um choro incontido, soluçava e não tirava a cabeça do ombro de sua amiga, sentiu o cheiro do perfume de frutas cítricas que ela adorava, lembrou que fora ele quem a presenteara para tentar irritá-la, pois ela não gostava de perfumes; e só usava por que Dário o dera e apostou com ele que usaria sempre mesmo sem gostar desses “aromas falsos e nada pessoais”.
- Calma Dário. Ela falava como se algo pudesse ser ouvido por ele.
Então ela olhou nos olhos de Dário, pegou em sua bolsa papel e caneta e começou a escrever. Ela sempre raciocinava rapidamente, não importava a situação.

- Dário, você não consegue ouvir nada?
Ele pegou a caneta e escreveu.
-Nada.
- Vamos ao médico agora. – ela escreveu no papel
Ele confirmou com a cabeça que sim.

Aprontou-se Dário e saíram então. Daniele, sempre muito sensível e empática percebeu que Dário não estava nada bem e precisava muito chegar logo ao hospital, ligou então para um serviço de Táxi e escreveu no papel para que Dário notasse a intenção, ele confirmou com um aspecto abatido. Alguns minutos depois o táxi chegou, do banco traseiro Daniele falou ao motorista:

- Para o IJF.

Enquanto isso ela ia escrevendo no papel:

- Não se preocupa meu amigo, vamos resolver essa situação, eu sou seu anjo da guarda, lembra?
- Lembro. Obrigado.
Dário não assimilara ainda tal tragédia, mas um desespero contido havia em seus olhos.
- Quando aconteceu?
- Acordei com dor nos ouvidos, então percebi que não escutava mais nada.
Uma expressão de dor formou-se no rosto dele.
-Calma, estamos chegando.

O Taxista pegou o dinheiro. Daniela desceu e, pela mão, retirou Dário do carro, ele estava aturdido, desnorteado com um impacto emocional tão imenso. Entraram no pronto-socorro, Daniela conduziu o amigo até um dos bancos de espera, foi até a enfermeira:

- Otorrinolaringologia.

A enfermeira, uma jovem moça morena mascando chiclete, na recepção puxou uma ficha e entregou para Daniela sem nem mesmo olhar para ela, número 2. Daniela sai pensando porque justamente as pessoas que mais deveriam nos olhar nos olhos não o fazem, mas abandonou seus pensamentos críticos e concentrou-se em Dário, assim que chegou para informa-lo que seriam os segundos a ser atendidos o aparelho que informava as ordens de chamada soou e estava marcando o numero 2. Ela então o tocou no ombro e o chamou, ele ainda de cabeça baixa, foi andando pelos corredores juntamente com Daniela. Dário ia pensando no sonho que tivera antes de sentir a dor, e desleixado nesse pensar não percebeu que dois enfermeiros vinham correndo atender a um chamado na campainha do quarto 14, que soava estridente, mas que não conseguia escutar, mas assim que os homens esbarraram nele, percebeu e quase os xingou, mas antes viu, assim que os enfermeiros abriram a porta do quarto 14, uma jovem mulher arrancando com o braço direito as sondas de suas narinas e os eletrodos que monitoravam sua pulsação, e viu que seu braço esquerdo estava amputado, com curativos manchados de sangue. Ele viu, e em frações de segundo ouviu em sua mente um estrondoso som de uma colisão metálica, vidros se estilhaçando, e o som de pneus arrastando-se. Sacudiu a cabeça, pensando ter voltado a ouvir, mas em seguida tentou escutar Daniele batendo na porta do Otorrinolaringologista, não ouviu.

- Bom dia doutor.

Daniele e Dário sentaram-se diante do médico, um homem calvo com grandes óculos em armação dourada, um RayBan com lentes de grau, era de meia idade com um bigode grisalho, seu velho jaleco com algumas manchas amarelecidas pelo tempo, e um relógio enorme no pulso direito.

- E então, o que você sente minha filha?
- Não sou eu doutor, meu amigo aqui não consegue mais escutar nada.
Dário percebia que os lábios deles se mexiam mas não escutava nada da conversa.
- Como assim? – o médico falou já se levantando e tocando no ombro de Dário para que ele se dirigisse até a maca. Dário foi até lá e sentou-se. O médico, que era um homem baixo, usava uma calça marrom por baixo do jaleco e um belo sapato de camurça marrom, pegou uma lanterninha no bolso examinou os ouvidos de Dário:
- Nenhuma inflamação. Nenhum sangramento. Pouca cera e sujeira. Ele já ficou sem a audição antes? – falou ele ainda olhando para os ouvidos de Dário.
- Não, que eu saiba não. - Daniele então pegou o papel e a caneta e escreveu a pergunta para que seu amigo visse. Ele acenou com a cabeça negativamente, nunca tivera tal problema.
- Algum caso de labirintite?
Daniele escreveu no papel, Dário, balançando o dedo indicador, demonstrou que não teve nunca esse problema.
- Algum impacto na cabeça, ou próximo da região das orelhas?
Depois de ver a pergunta no papel Dário disse que não, e achou estranho ouvir em pensamento que diria o ‘não’, mas não ouvir ele mesmo dizer. Nem mesmo sua voz ele ouviria dali em diante.
- Precisamos fazer um exame mais apurado pra medir a pressão do ouvido com um impedanciômetro.
- Um o quê!?- perguntou Daniela sem noção alguma do que o médico dizia.
O doutor então foi até seu armário pegou um pequeno frasco de remédio e levemente inclinou a cabeça de Dário e pingou uma gota no ouvido esquerdo, esperou trinta segundos, depois outra no ouvido direito e esperou mais trinta segundos. Dário sentiu uma coceira incômoda, mas nada escutou, nem o som do líquido que adentrara por suas cavidades auditivas. O medico puxou um bloco de anotações de seu bolso e escreveu perguntando se Dário escutara algo, um zumbido, ou algum barulho do liquido nos ouvidos. Dário com a cabeça acenou que não. O médico o olhou nos olhos, olhou para Daniela e foi até sua cadeira, chamou Dário com um aceno de mão, este saiu da maca e sentou-se ao lado de Daniela, que estava apreensiva com a expressão do médico:

- Não vejo nada de anormal no ouvido de Dário – falou ele olhando o nome do paciente no formulário. – Mas voçê que é esposa dele...
- Não. Não sou esposa, só amiga.
- Ah, tudo bem, perdão. Você tem que leva-lo a uma clinica fonoaudiólogica onde possuam um aparelho pra medir a pressão auricular, pra fazerem testes pois existem casos em que pressão desregulada do aparelho auditivo causa surdez momentânea, aconteceu hoje?
- Ele disse que acordou hoje com dor de ouvido, mas na noite anterior na aula nós conversamos normalmente.
- Tudo bem. Ele tem que ficar em observação, pois esta sem a audição e como foi recente ele está em choque pelo que notei nos olhos dele, e não vai conseguir andar sozinho pela cidade, pois pode se acidentar, recomendo descanso, e o exame que já citei, se ele sentir dor vou receitar aqui um remédio para pingar nos ouvidos. Ele mora com os pais, ou namorada, ou amigos?
- Não, mora só.
- Recomendo que alguém fique com ele enquanto não sabe exatamente o que aconteceu.
- Eu posso ficar. – falou Daniela olhando nos olhos de Dário, e agora notou o quanto ele estava abatido e em choque com tudo aquilo, quase uma lágrima ela solta dos olhos, mas não era momento pra deixa-lo mais preocupado, tinha que ser forte e ajuda-lo. O médico então assinou e carimbou a receita e o atestado médico para ele repousar uma semana.
- Pronto. Leve-o o quanto antes na clinica que eu indiquei aqui na receita, não perca tempo, audição é muito importante. – Ele falou colocando a mão no ombro de Dário, que já se levantara, despediram-se do doutor e saíram da sala. Dário olhou para Daniela e pegou a receita da mão dela:
- Mas o que eu tenho Daniela?
Ela escreveu:
- Não sabemos ainda Dário, mas aí está uma clínica para fazer os exames, vamos lá amanhã, hoje vamos pra casa descansar falar com sua mãe e irmã, tudo bem?

Ele confirmou que sim; e enquanto andavam pelo corredor passaram pelo quarto 14 onde aquela moça havia sido socorrida. Dário, lembrou que ouvira aqueles sons e ficou curioso, pensou em falar para Daniele, mas nada disse, apenas parou diante da porta do quarto quando por lá passou, Daniela estranhou, olhou para ele e para porta do quarto e fez uma cara de quem não estava entendo muito bem a atitude dele.
Ele pediu para que ela esperasse e em uma atitude quase instintiva abriu devagar a porta, a sala branca com as janelas fechadas, uma cama e um corpo feminino com entubação nas narinas e eletrodos no pulso direito e peito, aparelhos que marcavam escalas de cor verde, um soro que pendia de uma haste de metal. Uma mulher ainda mais jovem estava cochilando na poltrona reservada as visitas. Ela não percebeu a presença de Dário. Ele andou até a maca, Daniela preocupada que alguém os visse o olhava da porta e nada disse para não perturbar quem ali descansava. Ele se aproximou, viu que o braço esquerdo da moça, como já tinha visto antes, estava amputado, olhou agora mais de perto o curativo ensangüentado, o rosto dela com alguns arranhões, pensou em estilhaços de vidro na sua mente. Olhou para a ficha na cama e conferiu o nome dela. Lane Ribeiro Monteiro. A moça na poltrona nesse momento acordou, olhou para Dário e perguntou:

- O senhor é o doutor?

Ele não escutou, apenas olhava para o rosto da jovem mulher de cabelos castanhos ali deitada. Júlia então levantou-se da poltrona e tocou Dário no ombro, este assustou-se. Daniela entrou no quarto e tentou explicar que Dário não era o médico e já estavam saindo, nesse instante Lane acordou fitou os olhos de Dário, que a encarou e este estranhamente escutou um agudo grito em seus ouvidos, ele tapou os ouvidos, Daniela e Júlia estranharam, a moça na maca fechou os olhos novamente, adormeceu. Dário saiu do quarto passando bruscamente entre Júlia e Daniela, que pediu desculpas pelo incômodo. Lá fora Daniela, indignada, interrogou Dário escrevendo:

- O que deu em voçê Dário!?
Ele respondeu escrevendo:
- Eu a ouvi gritar!



--------------------------------------------------------------------------------------------------------------
... o som das moedas em uma pequena panela toda amassada, um corpo franzino e todo torto estendido no chão à chacoalhar a panela. O tilintar das moedas envolvia toda aquela praça. Era a decadência humana em efeitos sonoros. A sonoplastia das desigualdades, em um roteiro de indiferenças. Em pleno sol os transeuntes não davam ouvidos, eram surdos diante da gritante degradação humana.
--------------------------------------------------------------------------------------------------------------


VI

Júlia fechou a porta depois que os dois saíram, olhou mais uma vez para Lane ali deitada na maca ainda respirando através de tubos, com um sono comatoso. Aproximou-se da cama pelo lado direito, tocou o braço direito da namorada, lembrou da noite em que discutiram no banheiro da Boite, algumas lágrimas ela ali chorou remoendo culpas incomensuráveis em seu peito. Ouvia o barulho dos aparelhos que sustentavam Lane, que ficara naquele estado devido ao impacto no crânio, teve uma grave concussão, os médicos disseram que ela ficaria alguns dias em coma, acordaria e poderia voltar a dormir um sono muito pesado, “as seqüelas podem ser irreversíveis, mas só o tempo dirá”, assim disseram os médicos. Júlia pensou em tudo aquilo e olhou para o braço esquerdo de Lane, fechou os olhos não suportando mais ter que olhar a desgraça que acontecera, e na desgraça que seria pra Lane viver daquela forma. Ela assim imaginou a vida de Lane, e dessa forma já sentia em seu íntimo desaparecerem as esperanças de um dia reconquista-la, pois Lane nunca a perdoará, ela conclui isso em sua mente que sentia todo o remorso do mundo. Remoendo-se então ela sentou-se na poltrona ao lado da cama e puxou as pernas abraçando os joelhos expressando-se da forma mais melancólica possível, e colocou a cabeça entre os joelhos pra chorar o seus últimos dias com Lane, que para ela acordaria e diria: “Me esqueça Júlia! Esqueça!”.
Alguém bateu na porta e em seguida a abriu, uma enfermeira perguntou:

- Tudo bem mocinha?
- Tudo senhora. Ela vai acordar quando?
Júlia sempre fazia essa pergunta toda vez que algum médico ou enfermeira ali entrava.
- Não sei minha filha, mas com as graças do bom Deus será logo logo!
- E o médico vem ver ela que horas?
Enxugava as lágrimas com a manga da camisa amarela enquanto fazia a pergunta.
- Daqui a duas horas.
Eram 11:46 da manhã.
- Tudo bem, vou esperar.
- Tá certo, só vim conferir o soro, mas ainda tá na metade, quando estiver acabando voçê chama a gente, certo?
- Tá, pode deixar. Obrigado!
- Disponha minha filha. Fica com Deus! Vou orar por sua amiga.
- Obrigado. A senhora também fica com Deus!

Júlia não era religiosa, há muito tempo não freqüentava missas, pois era homossexual e a religião na qual fora criada não permitia união carnal entre pessoas do mesmo sexo. Ela discutiu muitas vezes, com muitas pessoas por causa do preconceito de opção sexual, mas depois de um tempo percebeu que aqueles que a discriminavam não mereciam nem sequer a irritação dela, e Lane sempre a incentivava a não trocar palavras obscenas com pessoas que pensavam tão estreitamente sobre as relações dos seres humanos, para Lane essas pessoas é que eram obscenas em seus pré-conceitos. Lembrou-se disso Júlia, e conseguiu esboçar um sorriso bem rápido no rosto marcado por lágrimas, pois Lane sempre a fazia rir ao falar tão polidamente e intelectualmente sobre a realidade delas, e nesse momento lembrou-se do dia em que se conheceram.

Júlia estava andando desleixada na Avenida da Universidade, próximo a Reitoria da Universidade Federal de Ceará, quando ela quase é atropelada por um Corsa de cor vinho que saia do estacionamento da reitoria. A buzina soou alto tentando alerta-la.

- Ei barbeiro!
Falou Júlia batendo com a mão direita no capô do carro, que freara no momento certo, e a pessoa que dirigia o carro baixou o vidro e olhou nos olhos de Júlia.
- Ei garota, vê se olha por onde anda!
Lane a encarou, baixando os óculos escuros para intimidar.
- Ah! Vai pra merda!
Júlia era ainda uma adolescente insensata e cheia de espinhas, que não media as palavras, seus amigos a adoravam por isso. E eles, que estavam com ela, a chamaram, pois senão se atrasariam para a aula.
- Vê se aprende algo de bom nessa escola!
Gritou Lane irritando Júlia que mostrou o dedo com toda a antipatia e correu até chegar a seus amigos.

Lembrou a jovem garota enquanto adormecia com o barulho dos aparelhos que ajudavam Lane a respirar. E no início do sono lhe veio um pesadelo.

Muita poeira no ar, a poluição atrapalhava a vista. Conseguia distinguir a cor de alguns vultos que passavam a sua frente, uns vermelhos, outros azuis, um vulto mais veloz branco. Escutou barulho de motores, mas não os comuns, e sim motores mais silenciosos, que emitiam um zumbido elétrico em vez do barulho da combustão. Caminhava por uma calçada de granito, forçou a visão quando chegou ao que parecia ser uma esquina, silhuetas de automóveis pareciam ser aqueles vultos vistos anteriormente, mas eram mais compactos que os carros habituais, então um deles buzinou alto, ela se encontrava agora no interior de um desses automóveis, por dentro era confortável, não possuía volante à frente para manejar o carro, ela olhou para o local onde normalmente ficava o retrovisor, naquele carro não possuía, escutou uma voz computadorizada falando em um idioma que não conhecia, mas que tinha um tom suave e feminino. O carro pára, a porta se abre sem precisar nem tocá-la e antes que saia do carro, um feixe de luz do sol quase lhe cega os olhos, ainda aturdida conta apenas com a audição, e escuta o barulho de gotas pingando e caindo em uma superfície metálica, as gotas se intensificam, chuva. Mas a claridade não sumia, apesar da chuva, ela pode finalmente abrir os olhos e não se agüentou em pé assim que viu a cena que destruiu seu coração, ali naquela chuva em pleno sol, em uma praça cheia de leões esculpidos ao redor, estava Lane nos braços de um homem, que a girou e depois a beijou. Júlia tentou correr para alcança-los, mas suas pernas não obedeciam ao desejo, tentou pular, mas o peso de duas gravidades estavam sobre seus ombros, e com esse peso insuportável ela não resistiu e foi caindo aos poucos, chorando lágrimas que ardiam em seus olhos como se fossem ácido, e assim que ela caiu no chão conseguiu acordar.
Ela tocou a face e percebeu que chorara não apenas no sonho. Olhou para Lane, que permanecia em seu sono comatoso.

--------------------------------------------------------------------------------------------------------------
... ele correu, mas não alcançou o ônibus. – “Porra! Motorista veado!”. Ajeitou a mochila nas costas, olhou para o relógio no pulso direito. 00:15 PM . Era o último ônibus. Pensou em ir de Mototáxi, conferiu a carteira. Desistiu da idéia, guardou-a no bolso e olhou para as ruas, quase sem tráfego, conferiu as nuvens, não iria chover. Retirou o relógio, colocou no bolso, deu uma cuspida, era sua mania, e começou a andar. Uma caminhada de cinqüenta minutos. Um mendigo vinha na sua direção, ele puxou as moedas no bolso da calça, as que serviriam para a sua passagem de ônibus, oitenta centavos, colocou-as nas mãos sujas do miserável homem sem ele nem mesmo precisar estende-las para pedir.
--------------------------------------------------------------------------------------------------------------


VII

Daniela olhou para Dário, a mulher na maca não tinha falado um ‘ai!” sequer, e não poderia ter gritado. Ela escreveu:
- Dário, como assim você a escutou? Ela não gritou.
Dário, ainda confuso, apenas pensava na esperança de poder voltar a ouvir e aquilo não passar de um pequeno problema. Sorriu para Daniela, que não estava compreendendo nada do semblante de Dário, e este falou, mesmo sem conseguir se escutar, mas formular a frase na mente já era escutar-se:
- Daniela, temos que ir pra casa. Não tô bem.
Ela escreveu:
- Temos que ligar pra sua mãe e sua irmã pra avisar.
Ele afirmou que sim com a cabeça. Ela começou a ligar do celular, enquanto saiam do hospital. Dário, um pouco mais confiante, deu sinal para o táxi. Daniela olhou para ele, como quem diz, “não tenho mais grana”. Ela pagara a viagem de ida. Dário se desculpou com o motorista e se despediu dele, então foram para o ponto de ônibus. Não demorou e já estavam na condução. Conseguiram assento na frente. Um ao lado do outro. Dário nada ouvia da conversa das pessoas que tanto estava acostumado a ouvir. Daniela ia conversando com ele através da escrita:

- Como voçê está?
- Bem.

Falou rispidamente e virou o rosto para a janela, não mais olhando para o papel onde a conversa aconteceria, pois Dário não se sentia tão bem para conversar naquele momento. Daniela compreendeu e guardou o papel e caneta na bolsa, então começou a pensar como estava se sentido Dário, seu melhor amigo ali sem poder ouvir nada, impotente em frente a uma situação tão difícil de entender, de aceitar. “Será que está surdo pra sempre?”. “O meu amigo, que tanto gosta de escutar música?”. “O amigo que sempre escutou meus lamentos, às vezes melodramáticos?”. “Como ele está?”. “Não! Não pergunta Daniela, ele não quer conversar agora.” Ela olhou para ele, que permanecia com o rosto virado para a janela, olhando as pessoas nas calçadas, nos carros, nas casas, o olhar de um homem confuso. Uma lágrima formava-se em seu olho direito, outra em seu olho esquerdo, tentou segura-las para que Daniela não as visse denovo, mas o insistente esforço machista de nada adiantou novamente, diante da força que o oprimia para o choro incontido e o chorou. Daniela então o abraçou, e ele pode então chorar ali no ombro dela como nunca chorara antes, não foi um choro gritante e cheio de alarde, era algo apenas soluçante nos ombros de Daniela. Algumas pessoas olharam, comentaram, outras esboçaram um riso, mas depois perceberam que era um choro cheio de significado e não merecia escárnio algum. Daniela tentou, mas não conseguiu conter em seus olhos as lágrimas de consternação. Sentados e abraçados permaneceram todo o trajeto, e assim que estavam chegando, Daniela; depois de enxugar suas próprias lágrimas, através de afagos no cabelo do amigo o avisou que iam descer. Ele secou seu rosto na manga da camisa, não vira que Daniela retirara um lenço da bolsa, ele aceitou e comentou sorrindo:
- Vou guardar, pra próxima sessão de novela mexicana.
Ela sorriu ainda lacrimejante, em ver que o amigo mesmo em tal situação não deixava de ser simpático com ela. Eles então desceram do ônibus, andaram três quarteirões e já estavam na casa de Dário. Daniela escreveu para Dário que sua mãe estava no trabalho e sua irmã na faculdade, mas que elas viriam até sua casa, e chegariam em duas horas. Ele leu, foi até o quarto, abriu o guarda roupa pegou uma toalha e levou para Daniela que estava no sofá da sala passando uma mensagem no celular para sua mãe de que iria passar o dia na casa de Dário, e imaginou sua mãe dizendo: “Ô novidade!”. Ela olhou pra toalha e sorriu para Dário e rapidamente escreveu no papel que retirou da bolsa:
- Voçê sempre adivinha o que estou pensando.
Não era adivinhação, Dário sabia que ela adorava tomar banho, e além disso seria um agradecimento pelo incomodo de retira-la da cama tão cedo. E enquanto ela ia para o banheiro ele foi preparar algo para o almoço. Na cozinha abriu a geladeira cor grafite, nada de ontem, teria que fazer algo rápido. No armário pegou o macarrão. Colocou água na panela para ferver, pegou a cebola já picada e salsicha na geladeira, o molho de tomate, sal, margarina. Cortou em rodelas as salsichas. Aumentou o fogo, a água já fervia e evaporava quando Daniela sai do banho e com a toalha ao redor do corpo foi até a cozinha, Dário estava no fogão despejando o macarrão na água fervente, colocou sal. Daniela pegou a garrafa de óleo no armário e despejou um pouco na panela.
- Pra ficar mais solto.
Ela falou, esquecendo por um momento que o amigo não mais escutava. Ele viu que os lábios dela se moveram, mas nada ouviu. Ela então foi pegar a caneta e papel, ao retornar já estava escrito o que dissera. Ele sorriu, mas o sorriso ficou embaçado com a fumaça que saia da panela. Daniela sentou-se na cadeira colocou os cotovelos sobre a mesa e com as palmas das mãos apoiando o queixo ficou observando Dário. Este a encarou tentando ler algo nos olhos dela, e disse:
- O que foi Daniela?
Ela escreveu:
- Vê-lo cozinhar me dá uma vontade de casar com voçê.
Ele esboçou um sorriso, mas nem mesmo aquilo, que o fizera rir tantas vezes, conseguiu deixa-lo mais alegre.
- Me passa o escorredor Dani.
Ela detestava que abreviassem seu nome, apenas à Dário ela dera tal liberdade. E lembrou-se do dia em que ele a convenceu de que podia lhe chamar assim.

Uma noite calorenta era aquela, uma sexta-feira que eles não esquecem. Daniela não fora pras duas primeiras aulas, Dário ligara pra ela, mas o celular estava desligado e na sua casa não atendiam ao telefone. No intervalo chegou Daniela pelos corredores; Dário estava no bebedouro quando a viu entrar rapidamente na sala. Ela não estava com sua mochila, ele estranhou pois ela nunca a esquecia, na verdade parecia uma extensão do seu corpo. Ao entrar a viu ali na carteira, riscando algo em um papel, quando se aproximou viu marcas de lágrimas nas bochechas, que ela tentou disfarçar.
- Daniela, tudo bem?
Ela nada disse e continuava a escrever, ele sentou-se colocou a mochila na cadeira do lado. Ficou calado e esperou ela falar.
- Dário. Entrega isso pra minha mãe.
- Brigaram denovo?
Dário não precisou nem ler, para saber do que se tratava.
- Dessa vez é sério! Vou sair de casa!
Ele sabia que ela não sairia. Ela olhou para ele:
- Que foi!? Não acredita!? Dessa vez é sério!
O pai de Daniela, o senhor Antônio, morrera há seis meses. E as brigas com sua mãe intensificavam-se a cada dia, pois Daniela estava sempre fora de casa, e sua mãe pensava que ela não aproveitava seu tempo, mas na verdade Daniela, saia de casa para estudar na biblioteca pública, só que sua mãe não acreditava, pois Daniela também gostava de sair pra se divertir, no entanto a garota nunca confundira as coisas, era consciente o bastante para dividir seu tempo entre estudo e diversão.

- Tudo bem Dani.
- Olha aqui Dário, detesto quem me chama de Dani, você sabe!
- E se eu lhe convencer que posso te chamar de Dani?
Ela ainda pensando na discussão que tivera com sua mãe à tardinha, ficou surpresa com a atitude de Dário, mas ele sabia muito bem que ela só se acalmaria se ele a fizesse rir de coisas absurdas, e pra depois com mais calma eles poderem conversar sobre o problema com a mãe dela.
- Como é!?
Ela perguntou sorrindo.
- Posso te convencer?
- Tenta.
Ele então retirou o caderno de sua bolsa e começo a desenhar, não tinha muita vocação para desenhista então tentou fazer dois círculos iguais e dois quadrados iguais.
- Aqui estão dois quadrados iguais e dois círculos iguais. Pois bem, esse primeiro quadrado vou chamar Daniela, o segundo quadrado também de Daniela, assim como os dois círculos.
- Não estou entendendo.
- Calma. Vou explicar. Qual a diferença entre as Danielas aqui?
Ela olhou a figura por alguns segundos.
- Existem as Danielas quadrado e as Danielas círculo.
- Isso. Vamos fazer a troca entre figuras agora. Uma Daniela círculo com uma Daniela quadrado, e assim com as outras duas Danielas. Temos então danielas aparentemente diferentes mais ainda com os mesmos nomes.
- Dário, tá muito confuso.
- Espera, não terminei sua apressada.
Eles riram. Ele a olhou, a viu sorrir e percebeu que o rubor voltara a seus lábios que antes estavam quase brancos de tanto nervosismo.
- Temos a Daniela aqui, a circular do primeiro casal, e o seu par quadrado, também Daniela que será agora chamada de Dani, para que não confundam seus nomes. O outro casal permanece com o nome Daniela. De todas as figuras aqui qual a que tem o nome diferente?
- Dani.
- Certo, a “Dani” sem o “ela”, mas ainda permanece originalmente Daniela, não permanece.
- Sim.
- E ela não é muito diferente da outra Daniela quadrado não é mesmo?
- Sim, as duas são quadrados.
- Mas o que essa Daniela quadrado, chamada ‘Dani’, aqui tem em termos de significância, diferente da outra?
- O nome abreviado.
- Certo. São diferentes no significado, mas não na forma.
- Isso.
Dário então desenha o boneco de duas mulheres, um esboço mal feito.
- Agora aqui temos voçê Daniela, minha amiga, e outra Daniela qualquer muito parecida com voçê, quase um clone. Uma delas eu estimo, conheço, sou capaz de pular de um bumg jump se ela também for.
Riram os dois da idéia absurda, pois os dois tinham medo de altura.
- A outra eu nem conheço, não sou amigo dela, nunca conversamos, mas suponhamos que vocês estejam vindo na minha direção, pra me abraçar, e eu não consiga distingui-las pela forma por serem parecidas, o que eu deveria procurar diferenciar em vocês.
- O significado.
- Pois bem, quem mais teria significado pra mim, a Daniela que é apenas Daniela, ou a Daniela que além disso pra mim também é Dani? Uma Dani que carrego aqui em minha vivência, será que não acertaria a Daniela, minha amiga, apenas com um abraço, ou não saberia eu diferencia-las, mesmo sendo idênticas, pela reação ao chamar cada uma de Dani?
- Ah, Dário, não me convenceu.
Mas a intenção dele não era convence-la e sim acalma-la, pois ele nunca a vira chegar sem sua mochila, que ela costumava chamar de “minha vida”, pois fora seu pai quem dera pra ela meses antes de morrer. Dário percebeu a seriedade da situação, justamente por esse detalhe e sabia que só algo absurdamente patético a faria rir, para que depois pudessem conversar mais calmamente sobre os problemas de suas vidas. No outro dia, depois de ter resolvido o problema da discussão com sua mãe, ela permitiu que ele a chamasse de Dani.

Daniela relembrou de tudo em apenas alguns instantes e quando se recobrava da lembrança, sentiu o aroma da famosa macarronada de Dário, que ela provara tantas vezes, mas que não cansava de elogiar.

--------------------------------------------------------------------------------------------------------------
... um cataclisma verdadeiro. Apenas cinzas voam no ar. Humanos que literalmente tornaram-se pó. Cremados por atos inconseqüentes de homens não menos inconseqüentes. Gritos que ecoam no tempo e espaço; e apenas o tempo e o espaço sobreviveram ao desastre nuclear. Mas não mais ocupam o espaço e nem mais contam o tempo àqueles que um dia se auto-proclamaram seres racionais.
--------------------------------------------------------------------------------------------------------------


VIII

Já eram 18:25 PM. Através da janela Júlia via uma lua cheia. Cheia de tristeza, amarelecida com aparência de enferma, pronta pra despencar do céu, um vento quente vinha lá de fora, a fuligem da poluição deixava as janelas e sua moldura metálica com uma poeira enegrecida, ao passar o dedo na borda metálica percebeu que a ponta dele ficou suja, limpou batendo uma mão na outra e sem perceber havia acordado Lane, que arregalou os olhos e apenas enxergava o teto, pois estava deitada, com sua visão periférica viu os aparelhos que a sustentavam, o barulho que eles emitiam, sentiu a sonda em suas narinas, mas permaneceu calma desta vez, tentou mexer o corpo para sentar-se mas este não obedeceu aos desejos de sua mente, apenas sentiu um formigar nas costas, uma impotência motora estava lhe condenando a ficar ali deitada, ela pensou: “será que não vou mais me mover, nunca mais?”. Depois de tal pensamento lembrou-se de seu braço esquerdo, a ausência dele lhe deixou descontrolada, ela arrancara com o braço direito a sonda e os eletrodos, mas agora a tristeza de tal pensamento era tamanha que ela não tinha forças nem para falar. Sentiu leves dores de cabeça enquanto pensava, não percebia a presença de Júlia, por enquanto, estava absorta em pensamentos oníricos. Primeiro estava com impressão de ter gritado com alguém, ou para alguém, um homem vinha vagamente à sua mente, ele trajava uma blusa verde escura de gola pólo, e tinha olhos castanhos e cabelos curtos de cor preta, seu rosto estava marcado por algumas lágrimas e havia uma inquietação em seus olhos. Ela lembrou que ele tapara os ouvidos no exato momento em que ela tinha gritado, mas será que ela gritou mesmo, ela estava com uma sensação de ser apenas um sonho, ouvira antes dos enfermeiros lhe sedarem que poderia alternar entre momentos comatosos. “Mas será que não estou num desses momentos exatamente agora, à sonhar quando penso que estou acordada?” Perguntou em sua mente, tentou balbuciar algo, mas algo em sua intenção não tinha força para falar um ‘a’ sequer. Ela pensou estar muda e que estaria presa apenas aos seus pensamentos daqui por diante; e de tanto pensar, as dores de cabeça estavam aumentando e uma sonolência começava a domina-la, ela tentava lutar contra o peso em suas pálpebras, que fechavam, mas em seguida abriam para novamente fecharem, ela travou essa luta por alguns segundos, mas não passou de um minuto, pois voltou a dormir. E no sono um estranho sonho.
Ela estava rindo em uma confortável poltrona de cinema, o ar estava gelado, a sala ainda iluminada mostrava um grande telão, algumas pessoas conversavam em poltronas à frente, ela olhou para os lados, estava com um homem ao seu lado, que segura um pote de pipocas, e lhe encara e fala, mas ela não escuta; e em seguida, sem explicação e sem conseguir se conter, desatou em uma gargalhada desenfreada. O homem também ria junto com ela, só que ela apenas conseguia deduzir o riso dele através da expressão e não da audição; em seguida ela parou de rir e tentou toca-lo mas ele afastava-se toda vez que tentava; era como um efeito do ímã, que aproximando a carga positiva da carga positiva eles se repelem. Mais uma vez ele a encarou, apontou para a tela e as luzes do ambiente se apagaram, e o grande telão mostrou a cena de uma estrada, ela escutou os risos que dera momentos atrás, a estrada era larga, os canteiros eram precipícios dos dois lados, à frente ela parecia não ter fim, as marcas amarelas, no chão, iam passando, como se a câmera que filmava aquela cena estivesse no capô de um carro, mas não se via carro e nenhum outro meio de transporte na estrada. Algo esbarra no seu braço direito, era o pote de pipoca sendo oferecido pelo homem que estava com ela, pega então algumas pipocas, mas quando as dirige até a boca, algo parece formigar em suas mãos, as pipocas eram na verdade vaga-lumes que não paravam de piscar sua luz verde ali no escuro do cinema, assustou-se e os largou, eles voaram até o teto e lá desapareceram, apagaram-se. Ao retornar o olhar para o homem ao seu lado, ele permanecia com o rosto risonho e concentrado na tela, ela então olhou para a cena que agora estava parada, mas ainda havia estrada e essa não tinha acostamentos ou possível fim, então um casal vindo do lado esquerdo das poltronas lhe pediu licença para passar na frente dela, ela permitiu eles passaram, a mulher que estava acompanhando o rapaz deixou cair algo da bolsa e quando Lane abaixou para pegar viu que se tratava de uma aliança de ouro, e estava gravado nela um nome. Ela tentou ler, mas neste momento o som estrondoso de uma colisão entre carros reverberou pela sala de cinema e quando ela olhou para o grande telão ela viu vários estilhaços de vidro na estrada; neste instante uma mão tocou-lhe o ombro direito, e ela sentiu uma enorme dor em seu braço esquerdo. Neste momento as luzes da cena apagaram-se e as luzes ambientes do cinema não se acenderam, então uma voz masculina sussurrou em seu ouvido, “não tema meu amor, estou aqui.”

Júlia percebeu que lane estava com o corpo mais quente que o normal, chamou uma enfermeira, ela disse que Lane estava com febre e daria através da sonda um antitérmico para regular a temperatura.

- Ela ficará bem. Ela acordou?
- Não.
Respondeu Júlia ainda com a voz embargada.
- Se ela acordar nos chame, o médico que fez os exames à tarde me disse que ela está se recuperando bem.
- Que bom.
Disse Júlia sem muitas esperanças. A enfermeira percebeu.
- Voçê namora com ela?
- Como?
Júlia ficou surpresa; poucas pessoas percebiam que elas namoravam mesmo quando estavam juntas, pois eram discretas.
- Não se preocupe minha querida, minha filha também tem uma namorada.
Júlia então baixou a guarda, ali diante dela estava alguém que compreendia, de certa forma , sua realidade, então foi até o sofá sentou-se e começou a chorar. A enfermeira aproximou-se, ajoelhou-se diante de Júlia e acariciou seus cabelos.
- Calma. Ela vai ficar bem e vocês poderão ser felizes. Sei que será uma situação difícil para sua namorada ter que viver sem um dos braços, mas nada é impossível para aqueles que tem a vocação para a vida, e Lane tem isso de sobra sabia, ela está resistindo a tudo com muita coragem.
Júlia pensou em dizer algo, um obrigado, mas percebeu que o choro não deixaria.
- Não pedirei pra parar de chorar minha filha, voçê e só voçê sabe a dor que está aí em seu peito, mas uma coisa lhe digo, não desista de viver pois sua namorada está exatamente nesse momento nos dando a maior lição da vida.
Júlia agora olhou para os olhos firmes da enfermeira e perguntou ainda soluçando.
- E que lição é essa?
A enfermeira olhou para Júlia, depois levantou-se e foi até a maca de Lane.
- Venha até aqui minha querida.
Júlia, sem muitas forças nas pernas, levantou-se e foi; ao chegar na maca onde estava seu amor a enfermeira disse:
- Me dê sua mão.
A enfermeira pegou a mão de Júlia e colou em cima do peito de Lane onde ficava o coração.
- Sinta a lição batendo em sua mão. Ela está aí entre a vida e a morte, mas ainda pulsa; o corpo não abandona a alma quando esta precisa dele, assim como a alma na abandona o corpo quando este precisa dela. Então não desista diante da força de vontade de sua namorada.
Júlia permaneceu ali com a mão em cima do peito de Lane, enquanto a enfermeira, de cabelos grisalhos, deixava o quarto e fechava a porta.


--------------------------------------------------------------------------------------------------------------

... as mãos calejadas não suportavam mais as duas hastes de madeira. Elas pareciam conter espinhos, mas o homem que as segurava não desistia. Olhou para a estrada que tinha um acentuado aclive adiante, agarrou firme nas hastes de sua carroça de metal, e mesmo com algumas farpas penetrando e ferindo seus dedos, ele conseguiu puxa-la até em cima, quando a estrada ficou denovo plana, parou. Enxugou o suor da testa, estava meio zonzo de tanto esforço, quase desmaia, não havia jantado ainda e nem sabia se haveria janta ao chegar em casa. Ouviu o sino da Igreja. 18:00 PM. Tirou as farpas dos dedos; benzeu-se; e continuou assim que as badaladas do sino pararam.
--------------------------------------------------------------------------------------------------------------

IX

- Vamos comer então.
Dário, disfarçando sua preocupação, pegou dois garfos, distribuiu a macarronada nos pratos; Daniela, já vestida, sentou-se e começou a comer, olhou pra Dário que comia com lentidão. Ele estava com o olhar perdido. Daniela escreveu, depois que terminou sua refeição:

- Dário, olhe pra mim.
Ele, ainda com comida na boca, olhou pra ela.
Daniela nada disse, apenas esperou que ele a olhasse por um bom tempo.
- O que voçê escuta vindo de mim? – Ela escreveu.
Dário estranhou a pergunta, pois ela sabia que mesmo que ela falasse não escutaria um sussurro sequer. Ela então complementou na escrita.
- Faça o seguinte, olhe pra mim e me diga a primeira coisa que voçê lembra escutar?
Ele então começava a compreender a idéia de Daniela. Concentrou-se nos olhos de Daniela, foi difícil no começo, alguns minutos eles passaram naquele estado, então sorrateiramente na mente de Dário veio o som de projetores de cinema, passando seqüencialmente uma película; arregalou os olhos e nervoso tomou a caneta da mão de Daniela e escreveu.
- Escuto o som de projetores de cinema passando filmes!
Daniela sorriu, um sorriso cheio de significados ainda não compreendidos por Dário, mas ela tinha milhões de pensamentos passando agora em sua mente e finalmente conseguiu concentrar-se em uma idéia: “Dário, caso esteja surdo, poderia re-aprender a escutar novamente? Mas como ensinar alguém a ouvir os sons?”
Ela então escreve:

- Sei que parece absurdo, na verdade voçê até já leu sobre isso em história ficcionais, mas voçê pode ouvir novamente apenas educando sua audição.

Dário leu, deu um leve sorriso sem graça, olhou para sua amiga e girou o dedo ao redor do ouvido, gesticulando como se dissesse: “voçê está doida!”. Ela expressou no rosto uma seriedade nunca vista por ele, então Dário leu mais umas duas vezes o que ela escreveu e ficou ruminado em sua mente: “educar a audição, educar a audição, educar a audição...”.
Blim-blom. Nesse momento sua concentração nesta idéia foi quebrada quando Daniela tocou-lhe a mão e apontou para o papel em que estava escrito:
- Sua mãe está tocando a campainha.
Dário levantou-se, ainda pensando naquela possibilidade, foi até a sala abriu a porta e lá estavam sua mãe e irmã, que falaram algo que Dário não escutou, mas que soou assim aos seus olhos:
- Meu Filho; o que aconteceu?
Esboçou essa pergunta nos olhos sua mãe Irma.
E nos lábios carnudos de sua irmã pareceu formar-se a seguinte sentença:
- Você parece bem Dádá.
Ele assim imaginou, pois sua irmã Rafaela era a única que lhe chamava de “Dádá”.
Se abraçavam no momento em que Daniela sentou-se no sofá. Entraram e se cumprimentaram. Irma, a mãe de Dário, foi logo perguntando à Daniela:
- Minha filha o que aconteceu? Ele parece estar bem.
A irmã olhou para ela como se fizesse a mesma pergunta. Daniela ajeitou-se no sofá para dar a notícia, pois quando olhou para Dário esperando que ele contasse, percebeu que agora ele estava a ponto de chorar tanto que não seria capaz de formular uma frase em sua boca.
- Dário não está mais escutando nada. Ele disse que aconteceu hoje.
Daniela sentiu um enorme mal estar por ter que contar uma notícia tão ruim, ainda mais sobre alguém que ela estimava tanto como Dário.
Irma, com seus belos e verdes olhos, fitou o filho e o viu cabisbaixo, enrolando um fiapo da blusa no dedo, como se fosse ainda uma criança. A mãe sabia que seu filho só ficava daquela maneira quando estava prestes a chorar, pois tantas vezes ela já o vira daquela forma, tantas vezes ele chorou em seus braços quando ainda era uma criança. Ela então o abraçou, Dário então pôde chorar no ombro daquela que lhe deu olhos para chorar, de sua genitora.

- Calma meu filho. Calma.

A voz suave dela não podia ser ouvida, mas mesmo sem escutar Dário foi acalmando-se aos poucos. Daniela percebeu e ponderou: “Talvez a voz seja mais do que som e audição.” Rafaela, a irmã de Dário, que era uma jovem de 22 anos muito bonita e herdeira dos mesmos olhos verdes de sua mãe, perguntou à Daniela?

- Mas ele já foi ao médico, o que ele disse?

Daniela contou sobre a consulta, mostrou que estava se comunicando com ele através de papel e caneta. Rafaela olhou para Dário nos braços da mãe e não resistiu, os olhos marejados; Daniela lhe ofereceu um lenço que tirou da bolsa.

- Obrigada Daniela. Voçê é um amor de pessoa, meu irmão devia casar contigo.
Daniela sorriu; um riso sem graça e falou:
- Ele merece coisa melhor do que eu.
Rafaela, mesmo chorosa, esboçou um sorriso. Então Rafaela, olhou novamente para o irmão, que não cessava seu pranto angustiante, e relembrou de quando Dário levou Daniela pela primeira vez no apartamento em que ela e sua mãe moram:

- Ela é namorada dele mãe.
- Deixa de conversa Rafaela! Já disse que não é!
Eles falavam enquanto Daniela foi ao banheiro.
- Quando é o casamento?
Rafaela adorava importunar Dário, sempre. Carinho de irmã mais nova. E Dário estava pronto pra dar uma boa resposta como, “vai ser no dia que voçê aprender matemática”, mas Daniela chegou nesse exato momento.
- A descarga está quebrada?
Os três riram, Dário, Rafaela e Irma. Daniela sem entender perguntou apreensiva:
- Eu quebrei!?
Eles riram novamente.
- Não Daniela, é porque essa descarga aí tem um macete, Tem que apertar três vezes.
Explicou Dário.
- É a combinação do cofre. – falou Rafaela.
E todos riram, depois foram almoçar. “Foi um domingo ensolarado, cheio da boa conversa cotidiana de nossa vidas comuns, que mesmo comum é a mais esplendorosa vida que eu podia almejar”. Assim falou Daniela para Dário quando ele, naquele dia, perguntou se ela havia gostado de sua família.
Daniela lembrou rapidamente desse dia e em seguida entregou para a senhora Irma o endereço da clínica em que ele teria que fazer o exame de pressão auricular.

----------------------------------------------------------------------------------------------------------

.. uma contração apenas. Uma aguda dor. Feição contente e ao mesmo tempo preocupada. Suor na testa. Uma mão que segura fortemente a sua. A mão daquele que, junto com ela, criou o que estava prestes a ‘vir-a-ser-no-mundo’. Um recém-choro, nascido ás 18:20h do dia 20 de outubro de 1982.

----------------------------------------------------------------------------------------------------------

X

O coração de Lane mal era sentido pelas mãos delicadas de Júlia, que permanecia deitada em seu sono imperturbável. Júlia chorava lágrimas já cansadas, seu rosto marcado, não vira maquiagem esses dias; foi até sua bolsa retirou um lenço, enxugou as lágrimas, pegou seu batom de cor laranja e passou nos lábios, com um espelhinho de mão ela retocou os contornos labiais, olhou para si bem no fundo dos olhos e relembrou da primeira vez em que recebera lições de maquiagem de sua namorada.

- -Não é assim Jú. O batom não pode ficar com excesso. Faz assim.
E lane mostrou como ela deveria retirar o excesso do batom dos lábios.
- -Pronto, é assim?
Júlia tinha apenas 17 anos. Elas estavam na casa de Lane, mas especificamente no quarto, as duas na cama ficavam conversando sobre seu relacionamento, que já durava 2 meses.
- -Jú, eu gostaria de saber uma coisa?
- -Fala Nane.
- -Tu já teve relações sexuais com garotos?
Júlia olhou para Lane, pensou na pergunta, fez um semblante de quem muito pondera sobre algo que parece nunca ter acontecido consigo. Levantou-se da cama, onde estava sentada, olhou para Lane, fez uma pausa muito longa antes de começar a falar:

- É... eu... já... – ela exitava.
- Fala logo Jú!
- Eu já beijei alguns garotos.
- E como foi.- pergunta Lane interessada.
- Ah! Sei lá, não gostei; eles não tinham carinho na hora de beijar, pareciam uns animaizinhos.
Lane riu depois de ouvir “pareciam uns animaizinhos”; e depois da crise de riso levantou-se e aproximou-se de Júlia, olhou a bela moça nos olhos e disse:
- Então quando me beija o que tu sente?
Júlia corou com pergunta, olhou para o lado, sentou-se na cama e começou a falar:
- Lane, eu sinto muita felicidade, uma intensidade que é leve, como se não houvesse mais ninguém no mundo...
Lane então envolveu Júlia em seus braços e a beijou tão carinhosamente que ela não resistiu e disse depois do beijo:
- Nane. Te amo!
Lane então conduziu Júlia lentamente até a cama, a deitou com cuidado, olhou em seus olhos e disse:
- A gente não pode esquecer dessa sensação nunca.
Lane tocou com a palma da mão direita o rosto de Júlia, esta olhou para sua namorada com quem reclamasse um beijo, mas Lane era provocadora, não iria ser agora, mulheres não são tão incisivas quanto os homens, ela deixaria aquele momento durar o quanto fosse necessário. Lane então abraça Júlia e diz em sua orelha esquerda:
- Você poderia fechar os olhos?
Júlia disse ‘sim’.
Lane começou a beijá-la, primeiro na testa, afagou os cabelos loiros da moça e continuou a beijá-la, nas bochechas, no pescoço, nos ombros e aí parou quando chegava aos seios, olhou para Júlia que estava com os olhos entreabertos tentando enxergar algo.
- Nada disso, pode fechar os olhos sua espertinha.
Júlia sorriu e estremeceu, pois sabia o que viria depois que fechasse definitivamente os olhos. Lane, sem tirar ainda a blusa de Júlia, começou a beijar levemente os seios rijos da companheira, aos poucos a excitação trazia calafrios ao corpo de Júlia que tentou abraçar Lane, mas esta advertiu:
- Não, calma.
Lane então em um leve movimento tocou, com as mãos,os seios joviais de Júlia, esta pensou em relutar ao toque, mas sentiu a maciez das mãos de Lane, o confortável toque de mãos amáveis e deixou que continuasse. Os movimentos duraram alguns minutos, Lane olhava de vez em quando para o rosto da namorada e percebia o quanto ela estava se sentindo bem, então aproximou-se de sua orelha novamente:
- Não há mais ninguém no mundo, só eu e voçê.
Júlia sorriu, ainda de olhos fechados, mas um sorriso satisfeito em escutar àquelas palavras. Tentou novamente, por impulso, abraçar Lane, mas não o fez. Estava hesitante, ainda não sabia como se comportar em tal situação. E ela se perguntou: “e quem sabe?”. Esse pensamento lhe vinha no exato momento em que Lane lhe mordiscava levemente o pescoço. Júlia sentiu cócegas, mas logo as cócegas estavam por todo o corpo. Ela se excitava e começava a perceber o quanto isso era intenso. Sentiu vontade de beijar Lane logo e não espera por mais nenhum afago, mas percebeu também que todo aquele momento paciente era um ato tão significativo quanto beijos.
Lane deslizou suas mãos por baixo da blusa de Júlia, alcançou com a mão direita o seio esquerdo; e com a mão esquerda o seio direito. Júlia não usava sutiã, não gostava do aperto que eles causavam, e Lane sabia muito bem disso. Com a ponta dos dedos lane acariciou levemente e nesse momento beijou Júlia, mas não era o beijo desenfreado e incontrolável, era apenas um breve encostar de lábios. Júlia sentia perfeitamente o toque dos dedos de Lane e quando foi beijada, todo seu corpo enrijeceu, e quando voltou a si escutou o que Lane disse:
- Pode deitar, mas não abra os olhos.
Júlia se deitou sem pressa.
Lane colocou o peso de seu corpo sobre o de Júlia, esta sentido o peso do corpo de Lane a abraçou; Lane permitiu e continuou as carícias.

Então, aos poucos, Lane foi retirando a própria blusa e para sua surpresa Júlia abriu os olhos e ajudou a terminar de tirar. Os seios à mostra, contra a meia-luz do quarto, os suspiros confundido-se a cada fôlego depois de breves beijos, com isso Júlia retirou sua própria blusa e após abraçaram-se. O contato carnal entre os seios era extasiante, o calor amenizado pelo ventilador no teto, mas que mesmo assim em ebulição estavam seus espíritos e corpos. Intuitivamente Lane percebeu que Júlia estava pronta e deslizou a mão direita até a cintura dela, acariciou sua barriga e sentiu os pêlos pubianos da jovem namorada, mas não demorou-se ali, não era a hora, ficou no limite entre o ventre e o início dos pêlos. Júlia contraiu-se ao sentir que sua região mais erógena estava sendo tocada.O sorriso cúmplice, o beijo agora estavam dirigidos ao seios de Júlia, que não sabia que existiam várias formas de se beijar alguém, mas estava sentindo o quanto isso era possível. Os toques dos dedos de Lane agora percorriam as pernas de Júlia, que sentia em sua nuca um calafrio arrebatador, então o calafrio transforma-se em um momento orgiástico, pois o toque era perene e penetrante, e os dedos de Lane eram mais do que presença física a estimular outra presença física, eram concentração de sentimentos ainda inexplicáveis, inéditos e que estavam sendo descobertos ali naquele momento, experiências que vinham para dar sentido a realidade daquela noite de amor...

- Olá, tudo bem?
A concentração de Júlia na lembrança mais prazerosa de sua vida foi perturbada por um enfermeiro que adentrara o leito.
- Oi, desculpa tava aqui sonhando acordada.
- Sei. Vamos ter que fazer um exame na sua amiga, tudo bem?
- Que exame?
- Um eletroencefalogama.
- Tá certo. Posso acompanhar?
- Sim. Vamos.


----------------------------------------------------------------------------------------------------------
O som de motores por todo o lado. Combustões incessantes e coletivas. Um terminal de transportes coletivos cheios de corações que não cansam de bombear seu combustível. Uns controlam o fluxo, outros manejam no fluxo, e existem aqueles que esperam por sua condução. Esperas demoradas, outras mais breves. Momentos coletivos em um ambiente comunitário. E os corações daqueles que ali esperam estão em combustão coletiva, bombeando paciências, diante da difícil vida e tempo que se perde nos terminais.
----------------------------------------------------------------------------------------------------------

XI

- Ele perdeu toda a audição.
A mãe de Dário, a senhora Irma, olhou para a médica depois o olhar foi descendo, ela fitou o chão, viu ali um abismo sem fim, sentiu todo o sangue de seu corpo gelar, uma náusea incomum veio até sua garganta, tentou se apoiar na mesa do consultório, mas escorregou tão rapidamente que não deu tempo, o desmaio foi inevitável, tudo aconteceu rápido demais e até mesmo Rafaela, que estava ao lado da mãe, não conseguiu segura-la. A médica então correu para socorre-la e ajudou Rafaela à erguer a senhora Irma, que já se recobrava do baque. Dário nesse momento retornava da sala onde medira a pressão auricular e vendo que sua mão passara mal, andou rapidamente até ela e perguntou:
- O que foi mãe?
Irma encarou o filho, não suportou o ecoar daquela palavra em seu pensamento: SURDO.
Abraçou o filho e chorou sem se importar com o tempo ou espaço, queria apenas embalar seu filho como fizera nos anos de sua infância, pensou em cantarolar algo apaziguador para ele como fazia toda vez que ele chorava no berço, pois a notícia seria tão dolorosa para ele, que ela não suportaria ver o filho tendo que encarar tamanho drama, temia que seu coração de mãe não suportasse, e já começava a não suportar.
- Fala Rafaela, o que foi?
Rafaela permaneceu calada, a dor em si era tanta que ela não juntava um pensamento sequer em ordem coerente, à beira do desespero encontrava-se a irmã de Dário. Este olhou para a médica e ela, já com lágrimas nos olhos, já havia escrito a noticia para ele:
- Você está surdo.
Dário, ainda com sua mãe nos ombros, tentou suportar o peso incomensurável daquela afirmação. Suportou o peso de sua mãe, mas não o da certeza de estar surdo. Chorou, assim tão perto de sua genitora, que parecia estar nascendo denovo, como no dia em que nascera e saíra do útero de sua mãe chorando aos berros, mas aquele choro era melancólico de quem está prestes a morrer e não de uma vida que acaba de nascer.
Daniela permanecia na sala de recepção, esperando sentada e lendo um livro, mas sem entender uma palavra sequer do que estava escrito pois sua atenção estava toda voltada para o que poderia estar acontecer com Dário.
- Mãe, calma!
Rafaela acomodava a mãe na cadeira novamente; Dário olhava para a médica e não sabia o que perguntar, Rafaela olhou para Dário e escreveu:
- Dário, vamos pra casa.
Este percebeu o quanto sua mãe e irmã estavam tão abaladas quanto ele e respondeu com um gesto de cabeça que sim.
- Vamos.
A médica entregou uma folha de papel para Rafaela, que nem o leu direito, e colocou na bolsa. E quando os três saíram do corredor, Daniela percebeu a expressão cabisbaixa dele e delas, mas não falou nada, apenas acompanhou o silêncio deles e permaneceu calada durante todo o trajeto de volta para a casa de Dário. Quando lá chegaram, Rafaela mostrou o resultado do exame para Daniela, que ao ver o que estava escrito, tentou segurar o choro, pediu licença e foi até o banheiro, lá respirou fundo, pensou milhares de coisas enquanto olhava para o espelho, pensou que teria que aprender a linguagem de sinais e aconselhar Dário a aprender a comunicar-se dessa forma, pensou em toda a adaptação complicada que seria agora a vida do amigo, fitou o próprio olhar e percebeu que estava apavorada mas não iria chegar com aquele semblante diante de pessoas que já se encontravam tão abaladas, molhou o rosto, enxugou na toalha, respirou fundo novamente e saiu do banheiro voltando para a sala, no sofá estava Rafaela que tirou os sapatos e ligou a televisão, o aparelho que poucas vezes era aberto naquela casa. Andou até onde estava a mãe de Dário, sentada na cama do quarto. Dário fora até a cozinha e estava bebendo água, na boca da garrafa como era seu costume, só que a água agora parecia amargar em sua boca. Daniela tocou o ombro de Irma, esta olhou para a moça:
- Dona Irma, Dário é um homem forte, ele vai saber lidar com isso, a senhora mais do que ninguém sabe disso.
Irma não tinha sequer mais forças para pensar no que deveria falar, nem mesmo o ‘obrigado’ ela pode dizer, mas agradeceu com os olhos chorosos. Dário passou pelo quarto e foi até a sala, trazia nas mãos uma caneta e um caderno e começou a escrever algo assim que se sentou ao lado de sua irmã Rafaela, que instintivamente o abraçou, Dário sorriu agradecendo o abraço e continuou escrevendo. E aqui entramos no mundo silencioso de Dário e suas palavras inaudíveis.

Livro I

“Dêem-me uma alavanca e um ponto de apoio e eu moverei o mundo”.(Arquimedes)

Eis-me aqui, em um mundo tão silencioso que o som parece algo irreal, me pergunto se o som não é uma parte ilusória da existência de todos, porque ouvimos as coisas?
Sentado no sofá, não escuto mais o atrito entre meu corpo e o corpo do sofá, os lábios do jornalista movem-se na TV mas não escuto no ar o som eletrônico que se forma nas caixas e que viajam através do ar em moléculas invisíveis e chegam até meus ouvidos que não mais ouvem. Aqui cabe saber, estou surdo ou apenas não acredito mais nessa realidade material do som? Tantas vezes escutei o mundo, será que meu ‘ouvir’ cansou-se e morreu em mim. Apenas uma palavra parece ser audível em minha mente: SURDO. E ecoa sem cessar, parece que ressoa em uma caverna cheia de galerias que potencializam o som e quase me enfurecem; mas não, nada posso fazer para reaver essa condição de ouvinte, mas também não vou me conformar, ainda escuto meus pensamentos, e isso não é também ouvir? Digo e afirmo que sim, pois agora mesmo escutei e escuto todas a palavras serem ditas pela,e na, minha mente. Ouço, portanto, de uma forma mental. Minha irmã, com marcas de lagrimas no rosto, assiste interessada ao noticiário, pensa em mim mais do quem em qualquer outra pessoa neste momento. Minha mãe no quarto sendo confortada por Daniela. Ah, Daniela, que amiga eu poderia desejar senão ela? Com ela eu viveria até o tanto que ela vivesse. Mas deixando todo o meu mundo de lado, falemos agora do seu mundo. É isso mesmo, esse mundo que você enxerga todas as vezes que abre os olhos assim que acorda. Falemos do sol que voçê acha que está tão longe, mas que na verdade está tão perto que você nem imagina. Como? Simples, os mesmos átomos que serviram para constituição do Sol à milhares de anos estão também em sua constituição corporal. És tão parte do mundo e do meio natural quanto qualquer outro animal andante da natureza, mas voçê é um animal que pensa, raciocina, sabe que raciocina, questiona esse raciocinar e experimenta tudo isso em comunhão com muitos. Gostaria de aqui me estender, mas pra quê contar em mil páginas o que posso contar em apenas duzentas. E hoje o que conto é o seguinte: estou surdo, mas escuto melhor agora como nunca escutei antes.


----------------------------------------------------------------------------------------------------------
... cuspiu o sangue da boca, o supercílio direito aberto. Apertou as mãos dentro da luva, esquivou de um golpe, um direto de direita. Lona. Caiu tão rápido quanto o golpe que o derrubou. Sentiu um formigamento no antebraço, olhou e viu nele a agulha fincada, o soro que pendia de uma haste de metal, viu-se deitado em uma maca desconfortável, escutou o barulho de passos no corredor, um murmurinho de pessoas do outro lado da porta branca. Tentou levantar-se, moveu um pouco as pernas, mas faltou-lhe forças. Respirou forte, sentiu dores nos rins. E na poltrona um cinturão descansava. Miragem, ou a derrota dá cinturões à perdedores?
----------------------------------------------------------------------------------------------------------